à memória de Ester Carneiro Gonçalves
1920-2010
Tia,
Somos apanhados de surpresa e o carteiro atrasou-se na entrega.
Um sorriso, uma vida inteira, talvez seja isto que quero agradecer.
Já não sou o menino dos rebuçados a fugir da escola,
Cercando o seu jardim com a bicicleta verde.
Nem sei dela.
Deve ter ferrugem e musgo.
Hoje cortei a barba para não parecer desleixado
E ajudei os homens do caixão, à porta do seu quarto.
As suas mãos estavam macias. Tinha um vestido preto,
Um lenço de seda e um colar de pérolas falsas.
A Tia nunca cedeu a populismos. Foi sempre igual a si.
Fica bem de colar a dizer mal do 25 de Abril,
Ainda que eu possa discordar.
Mas cuidou democraticamente da minha infância quando a minha mãe estava obrigatoriamente ausente e era Verão.
Sabe, Tia, foi Verão durante muitos anos.
Demorou uma vida esta carta em que o sol foi sempre radioso e a noite estrelada. Não havia morte.
Essa coisa dita desse modo, era como um país distante.
A tia nunca soube, mas anoiteceu na minha vida.
Temos talvez histórias parecidas.
Lembra-se do dia em que fomos à Quinta da Ribeira?
Foi o último, sim. A tia sabia.
Por isso,tornou aquele momento especial.
Provavelmente terá trazido um ramo de espiga, uma rosa ou uma outra flor.
Esta carta chega tarde. A esta hora já dorme, depois de ter comido uma maçã assada e ter estado com alguns que amava.
Daqui a pouco vou sair da escola
Vou comer um bife feito pela minha avó
E vou com o Pedro (saudades dele) rondar eternamente o seu jardim com a bicicleta verde.
A tia chega à porta, finge estar zangada
e
Sorri.
1 comentário:
É muito, muito bonito... não consigo dizer mais, emocionei-me.
~CC~
Enviar um comentário