quinta-feira, abril 22, 2010

11.

Cortei-me num caco de garrafa na rua de Medreiros
e o dr. Egídio deu-me soro anti-tetânico ao anoitecer.
Esta primeira memória atravessa comigo o rio
a caminho do Seixal anos a fio levantava-me
de manhã cedo os braços à procura
dum cigarro os óculos entre frascos de remédios.
Corria pelas ruas até um autocarro e depois o metro
e depois outro autocarro daí ao cacilheiro
e à camioneta por povoações de dormitório,
charcos oleosos de estaleiros, braços de rio
de marés apodrecidas e mulheres mal dormidas
nas primeiras limpezas da manhã.
Chegava aos pré-fabricados da escola
com rapazotes sujos a assobiarem às pedradas
e bandos de raparigas vestidas à foto-novela.
Ao cheiro ordinário de café e bolos
o iludido grupo dos que partiriam
para as divisórias de madeira prensada
a ensinar por livrecos imbecis o ilusório comum.
Vindos da presunção de faculdades arengavam
pelo dinheiro menor dos vencimentos,
livros de ponto nos braços submissos
a confirmá-los num mister mesquinho.
Do local enganador da secretária
no reprodutor vazio dessas aulas
levava os olhos para a cela da janela.
Um céu de fumos dava-me o que eu perdia.
Do suposto centro donde me sentavam
até à boca morta de uma chaminé de fábrica
a perspectiva assujeitada do lugar
despenhava-se das coisas reais.
Trinta anos depois de ter nascido.

- Joaquim Manuel Magalhães
in Os dias, pequenos charcos, Presença

1 comentário:

Lp disse...

grande escolha (parte 2).