por uma ladeira química na direcção
do coma, e nisto o despertador
desata a soluçar (Cinco da manhã
que merda),
a porteira remexe-se, incomodada,
ao meu lado, conversando ainda
com os esquisitos animais fantásticos
dos sonhos, protesta, debate-se,
o mau hálito aumenta, o perfume
azedo dos sovacos ocupa o quarto inteiro,
à laia de um par de texugos gémeos
fedendo em uníssono relentos de jazigo,
e logo o candeeiro da mesa de cabeceira
aceso aos apalpões, claridade súbita
que estilhaça os objectos e rebenta
os miolos, e depois o compartimento
a reconstituir-se devagar, penosamente,
roupa no tapete, caixilhos, um pedaço
de estuque lascado junto ao tecto,
o carrapito da mulher a emergir,
povoado de ganchos, dos lençóis,
as míopes pálpebras estremunhadas,
a careta contrariada do costume,
_______________________Tenho de
me ir embora, riqueza,
________________e eu sem entender
se a detestava ou se gostava dela,
se a estimava de facto ou necessitava
somente de uma companhia qualquer,
não importava qual, uma mulher,
um gato siamês, um cachorro, um periquito,
algo de vivo e quente e móvel
_____________________que o fizesse
sentir-se vivo também, a odiá-la e
a querê-la enquanto a beijava à despedida,
encolhido nos cobertores como um bicho
(Tenho de mandar-te sem falta ao dentista
esta semana, tenho de pedir-lhe que
te limpe os dentes),
______________e a fitá-la
desconcertado comigo mesmo enquanto
chinelavas quarto fora para o patamar
a abotoar a camisa, a enfiar o casaco de malha,
a apalpar os ganchos,
_______________a transportar consigo
aquela repugnante soma de odores, a porta
da rua bateu e o eco, rombo, ficou soando
muito tempo pelas salas desertas,
o tenente-coronel colocou o soporífero
na língua, engoliu-o sem água
e sentiu a pastilha descer-lhe, a hesitar,
pela garganta, apagou o candeeiro
e permaneceu muito tempo quieto,
de olhos abertos, como um cachorro
acossado, atento à suave e enervante
textura do silêncio.
- António Lobo Antunes
in Fado Alexandrino, Dom Quixote
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