segunda-feira, março 08, 2010

Penúltimos Cartuchos, Miguel Martins (2008)

A dimensão coloquial do título, a um passo do prosaísmo, poderia fazer antever em Penúltimos Cartuchos uma filiação que, confrontados os poemas, se descobre não existir. Poderemos dizer que a ironia que subjaz ao uso de uma expressão de tal modo delida pela usura do mundo une forças com a sombria significação da própria fórmula em causa. O cuidado impresso na linguagem, porém, e o labor inimaginável na depuração do verso, a sua economia verbal – «A minha terra é a maré-baixa.» –, afastam irremediavelmente este livro de qualquer banalidade. Em Penúltimos Cartuchos, o dom de um estilo terso e contido – «Dormir até ao meio-dia é menos mau do que/ não conseguir dormir até ao meio-dia.» – coabita com um ferino sentido de humor – «Condomínio fechado: kevlar, doce lar.» –, que mantém sob rigoroso controlo o tom insidiosamente sulfúrico das suas investidas, pelo qual nunca descai para o desbragamento da sátira (pondo-se mesmo em causa: «O humor não tem graça.»), a invectiva, a crítica de costumes – «Estar vivo é ter dores de tesão.» O seu espectro é demasiado escasso e, simultaneamente, lato em excesso para tal – «Quem sabe do que faz raramente sabe o que faz. E vice-versa.» Os epigramas recolhidos neste brevíssimo volume não procuram, a despeito da sua brevidade, o particular – «essa aberração que é o indivíduo» –, mas uma certa respiração universal, imposta pelas suas duras, incisivas, palavras marcadas por uma impenitente decantação, pela sobriedade de uma dicção de timbre clássico. O pendor frequentemente aforístico dos poemas de Miguel Martins, concretizado amiúde por formulações sentenciosas, assentes em estruturas quiasmáticas – «Quem acha que a vida é para levar a sério deve andar convencido de que a morte é a brincar.» – ou antitéticas – «Sou uma luz que só se acende no escuro» – traduz uma moral tragada com o travo da amargura e de um cepticismo consciente de tempos que fogem, mais do que correm – «As boas ideias e as boas pessoas deram cabo do mundo.»

A rasura impressa à visão do mundo e suas mínimas incidências é sustida por uma escrita depurada, em extensão e intenção. Decantada até à nervura óssea do mínimo expressivo, a poesia de M. Martins contém-se na sua dicção com vista a dizer o breve, intenso relâmpago da sua deflagração verbal «O poema é uma escada que os olhos descem enquanto a alma sobe.»

Atente-se na gestão das epígrafes, que alargam e ampliam a espessura dos poemas, quase excedendo, por vezes, a extensão dos seus versos. Como quando as palavras de Raul Brandão, de forma tão impressiva e orgânica, se constituem como que o perturbante índice para a coda que o poema de Martins forma – «“E agora a morte não existe. Deus não existe, a vida eterna não existe. Uma luzinha e depois a escuridão.” [Raul Brandão]. A arte como masturbação não me interessa; como cópula, pouco; interessa-me, sim, a arte como orgia.»


- Hugo Pinto Santos


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