quarta-feira, março 24, 2010

À espera do primeiro eléctrico

Outros que critiquem
o planeamento do território,
os crimes urbanos, a droga
que pacifica os estados
aparando sedições virtuais.
Apetecia-me comer, agora,
mas os poemas só têm valor real
(isto é, monetário) na lua
de Bergerac. No Martim Moniz,
em perpétua demolição, nem cheques
aceitam – quanto mais versos
que não rimam com nada.

Tenho à minha frente o futuro,
um futuro de três cervejas
e talvez de um charro,
se encontrar alguém. Um futuro breve
(a redimir ou não nas ruas mais altas),
nenhuma vontade de amor
e os pés acentuadamente azuis
– fétidos, sem dúvida alguma.

Já me propus, em dias de tédio maior,
escrever um poema vário, curar-me
destas ladainhas pouco edificantes.
Não deu, paciência. Consola-me ao menos
a irrefutável pobreza do quotidiano.
Estamos bem um para o outro
(mas uns trocos davam jeito, com real ou sem
ele – e eu não sei arrumar carros).

A noite lá faz o que pode.
De sarjeta em sarjeta
isto podia tornar-se interminável,
se a paciência me quisesse
honrar, tísica como uma musa.
Mas acabo na Cachupa,
corpo & poema num enxovalho mesmo,
à espera da manhã que sinistra
avança e vomita de luz
o primeiro eléctrico
rumo ao desespero.

- Manuel de Freitas
in Infernos artificiais, Frenesi

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