quarta-feira, março 24, 2010


Comprei-lhe requeijão durante vários dias.
No último enganou-se nos dinheiros
fez o embrulho num papel errado.
Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em trocos.
Continuei por entre os corredores
do resto do supermercado e via
a cada espaço vazio de caixotes
o seu olhar a seguir as minhas compras.
Quando estava prestes a curvar-se
para pesar um frango, uma morcela,
coelhos bravos, queijos ou fiambre
sorria-lhe de novo. Erguia logo
o corpo alertado turvavam-se-lhe as mãos
hesitava pelo ar refrigerado do balcão
até estender os seus produtos
à primeira mulher e às que se seguiam.

Com a cesta de metal quase já cheia
deve ter visto o adeus dado nas coisas
de comer para muito tempo:
veio pois numa qualquer desculpa
fingir que levava fardos para dentro.
Fui atrás, soube-lhe as horas de sair
vim esperar depois da caixa, à porta.
Os carros iam de regresso às casas,
o ar toldado de novembro em sol
que vem antes da chuva,
nos autocarros iam por detrás dos vidros
rostos que doía ver passar.

Chegou metendo um pente n'algibeira,
a sacola que fora matinal ao ombro,
atravessou comigo o quadrado
da praça quando o trânsito parou.
À última luz do dia via-lhe o cabelo
com o pó das horas de trabalho.
Por agora dizia-me o seu nome
entre dentes rasgados pelas cáries
mas sorrindo tanto sob a pele escura
que eu fechava os olhos para perdurar
até tirar-lhe a camisola, as meias
trocar o meu hálito de dentífricos
pelo seu cansado de erva doutras formas
contra os horários as coisas do dinheiro
outros a dizer-lhe o que devia ser.

De mim havia de ir para uma paragem
à espera do transporte de que sairia
num dos caixotes de arrabalde,
o corpo satisfeito mas fendido
do prazer combinado para outro dia
que podia voltar ou não voltar a haver.

- Joaquim Manuel Magalhães
in Alguns livros reunidos, Contexto

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