para a Ana
Com a cabeça no colo de uma
tarde de março, a mesa e a linha
das garrafas de cerveja, alguma coisa
que me fez esperar o pôr
do sol, um assim-
-assim só, com bandos breves
de pássaros na mancha de luz velha,
tons embrutecidos a meterem-se
com as sombras, brinquedos que
se quebram. Eu e mais uns como
crianças amuadas pelos cantos
dos quintais, quando chegas
do Redondo num corsa uns anos
mais velho que tu. E é engraçado
(eu acho), parece um anúncio
em que não se percebe o que nos
estão a vender.
Entre espinhos e abrolhos, o coto
de um carvalho que dá espaço suficiente
para nos sentarmos os dois. Um beijo rápido,
depois vais contar-me uma história
e eu vou aguentá-la esgueirando o olhar
para o fundo da rua, aquela dor
estreita e simples a subir engolindo
em seco.
Falas e vais enfiando as mãos no interior
das minhas mangas. Ganhou já
borboto a camisola amarelo-vivo
que me deste e que aperta e me pica
no pescoço. Isso e uns começos
de barba agora que tenho vinte e cinco
para fazer. O cabelo é outra coisa,
não chegou a ficar como o queria e continuo
a perdê-lo por aí. Mais um, talvez
dois invernos, depois ninguém se lembra
e vou convencer-me que até fico
mais homem sem ele.
Deixo a um soluço o sorriso
que levei longe demais
e perguntas-me o que foi. Entre
tanta gente que não gosta dos meus versos,
tu também, mesmo os melhores,
esses mais eloquentemente banais.
Nada, só uma ideia que me veio.
Também detesto o que escrevo,
chego a rir-me disso, sobretudo
porque não tenho mais nada.
Soturno deleite, sujo, quase
um vazio coçando-se,
sons inúteis a arranhar a superfície
do cansaço que se afunda num gajo.
Entretanto jantamos.
Levas-me para tua casa. Nunca sei
se vou ter sorte ou ficar só
a olhar as nódoas doces no pijama –
da vez em que te encheste de cerejas
e depois vomitaste uma groselha azeda
a noite toda. Pões o alarme
e a sério que me dói que a porra das manhãs
comecem todas com o cacarejo enervante
do Bob Dylan. E rolamos
para fora da cama. O café, as tuas torradas
com doce de laranja e o Kerouac que enfias
com as chaves na mochila.
Há semanas que o lês aos tropeções,
como se isso te levasse a sítios. Leva?
A cidade cheia de miúdos
como nós, indo para adultos, lendo
aventuras nos metros e autocarros:
os mesmos túneis sem luz, rotundas de
todos os dias. E às vezes cansa-me fixar
o tecto, tiro o braço debaixo da tua cabeça,
puxo as calças das costas da cadeira,
saio para conduzir de madrugada e atravesso
a ponte com vontade de me pisgar.
Da outra margem vejo Lisboa –
lânguido derrame de pontos luminosos
– como se a perdesse. É sempre o mesmo,
o que me faz voltar para ela.
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