a suspeita de uma mancha de manteiga
semelhante a uma nódoa translúcida
de nuvens, ou nem nuvens sequer
e somente uma leve acentuação de cor,
uma lágrima diluída a aguarelar o ar,
algo de indefinido prestes a cristalizar-se
e a crescer. Sentira isso em Lagoa,
em Albufeira, em Armação de Pêra,
em Tavira, com uma crispação estranha
no peito, uma angústia inlocalizável,
sem nome, no corpo curvo à espera,
sentira as suas veias dilatarem-se
do sangue das trevas em pleno dia,
ouvira-as gemer nas têmporas
como as madeiras dos sobrados velhos
ao peso dos fantasmas da infância,
sentira a semente do escuro no interior
do corpo idêntica às pedras de mica negra
da Beira, e pensava Anoitece tão cedo
em mim, pensava Quando me abrirem
a barriga numa mesa operatória,
à procura do fígado, ou da vesícula,
ou do estômago, encontram
em lugar de vísceras um silêncio
de quintas desertas e o ladrar longínquo
dos cães, a inquietação dos cães
chamando, sobressaltados, a madrugada.
A luz do Algarve, a luz de Messines,
pegava-se aos polegares tal um pó de borboletas,
se eu tocar numa casa, ou numa rua, ou num rio,
a marca da minha mão fica impressa nas coisas
como no barro húmido da escola,
cova da palma, falanges, unhas,
posso roubar um pedaço a esta tarde,
levá-lo no bolso até Lisboa, tirá-lo da algibeira
e ficar a olhar por muito tempo os campos
desenhados pelas ondas, os cachorros
cabisbaixos que trotam entre as vinhas
no passo oblíquo das raposas, a tímida penumbra
dos alpendres, a terra que o mar despreza
como um osso inútil, um osso oco como os das aves
assassinadas num voo interrompido.
- António Lobo Antunes
in Conhecimento do Inferno, Dom Quixote
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