Chegas-me a boca em silêncio e
trazes o gosto amargo do café, duas
chávenas seguidas encurtando as
distâncias. Seria perto das nove,
talvez nem chovesse mais e
ficasse apenas o inverno a roçar-se
nuns primeiros indícios
de primavera, enquanto a luz
molhava os lábios e vinha descendo
cuidadosa os telhados, pisando
nos contornos derramados das coisas
recuperando algum detalhe, iam
crescendo aos poucos num enjoo
colorido com as sombras ajeitando-se
em volta.
Ao fundo a linha esborratada do rio,
grosseiro, arrastando o que pudesse
e ferindo os reflexos invertidos
das casas podres junto à margem.
Nós dois a uma mesa, sentados
numas cadeiras coxas de plástico verde,
e ao lado, no chão, páginas ensopadas
do jornal de ontem – o que se passou
na Madeira? –, este cheiro fodido
a abandono pela manhã, o tipo
atrás de nós fumando aborrecidamente,
outros bocejando de um sono já
definitivo. E aqui o que se passa?
Ias e vinhas nuns rodeios implausíveis
deixando às tantas uma frase a meio
como se lhe perdesses o interesse,
separando as contas no fio ao pescoço,
na tua t-shirt um Lou Reed muito quieto
deita um olhar lento e sem destino
dissolvendo-se daí a pouco na água
choca de um tanque pouco profundo,
rodeado por meninos de barro
numa inocência exagerada, enquanto
desfazíamos juntos uma mão-cheia
de margaridas, pétala a pétala.
Mostrei-te o que tinha já escrito
e trouxeste os dedos para um desenho
sobre os lábios, levaste um bocado
a fixar uma linha estreita, pouco menos
que um sorriso. Mas entendi e puxei
de volta o caderno.
Não há nada e o vento, no seu resmungo
incompreensível, explicou já tudo.
Com as duas mãos próximas repetias
um gesto meio absurdo, como se
pelasses uma nêspera invisível. No fim
ofereceste-ma.
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