segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Caminho e
tenho quase muitos anos durar é o meu maior problema

João Miguel Fernandes Jorge


A manhã avançou da ressaca
nos corpos que deu enrouquecidos
às primeiras horas de um domingo
entre as praças, travessas e ruas,
no colo da cidade a que subiu
um sol miúdo
com as suas sílabas agudas de luz,
poças de leite sujo e um sussurro
entre as flores amachucadas
num desenho destruído pela chuva.

São as seis já na voz ferida do fim
de tarde quando vens. Janeiro acaba-se
próximo ao derrube castanho de uns olhos,
baixos, de português, onde
trepam sombras para beber-lhes
as riscas de sangue. O rosto todo
amarrotado não chega para uma
expressão, só os dedos sobre o tampo
da mesa, pegando ou deixando
o lápis, inventam uma calma linha
de água, delicadeza
que não vai durar nada.

Gastas com bebidas açucaradas
o que tens, a alma é
essa pequena despesa e a agonia doce
roubada a alguma canção. Por trás
a convulsa luz do televisor, modelo
antigo, babando-se para cima
de nós e o relógio na parede amolecendo
o tempo, gotejando segundo a segundo,
nesta obsessiva composição
de pequenos sinais junto a uma idade
em que muito não tem já volta.

A tristeza sabe
do que gostamos, às vezes é tudo
o que ainda se aproveita dessa tendência
para a descrição – o pior dos
teus hábitos – um poema que se deixa
apanhar entre a beleza quebrada
das coisas que ficam
pelo cansaço dos dias, sentado
nestas cadeiras com os pés lambidos
pela maré baixa
das nossas bebedeiras silenciosas.

Agora mesmo, numa dessas, lês
Lobo Antunes e tens a sensação
que sim, é isto. A glória podre da escrita
não deteve antes um fulgor destes –
flor ácida de uma resistência
solitária, levantando-se nas cores
queimadas do esplendor que nos resta.

O céu enegrece, cobre-nos e deixa-se romper
por uma conta escassa de astros,
vens virando esquinas, por corredores
de vento, e espreitas aquela
miúda alegre e feia que se põe, com a noite,
assobiando da janela de um rés-do-chão, e te dirá
que gosta de música para dançar, livros
de aventuras, e de caçar luas
com alguém que a beije ao acordar.

No quarto miserável de qualquer
um de nós, no meio da roupa espalhada
pelo soalho cada vez mais
inclinado, as mesmas sombras, agora
envergonhadas, escondem-se por baixo
da cama e abraçam uma pequena morte.

1 comentário:

Unknown disse...

Bom, Diogo. Ou começo a apreciar melhor o que escreve ou tenho gostado mais do que tenho lido ultimamente. Também ler é aprender a ler.