domingo, janeiro 31, 2010

Luanda começou por ser
um pobre cais sem majestade
cujos armazéns ondulavam
na humidade e no calor. A água
assemelhava-se a creme solar turvo
a luzir sobre pele suja e velha que
cordas podres sulcavam de veias
ao acaso. Negros desfocados
no excesso de claridade trémula
acocoravam-se em pequenos grupos,
observando-nos com a distracção
intemporal, ao mesmo tempo aguda
e cega, que se encontra nas fotografias
que mostram os olhos voltados
para dentro de John Coltrane
quando sopra no saxofone
a sua doce amargura de anjo bêbedo,
e eu imaginava adiante dos beiços grossos
de cada um daqueles homens
um trompete invisível, pronto a
subir verticalmente no ar
denso como as cordas dos faquires.

Pássaros brancos e magros
dissolviam-se nas palmeiras da baía
ou nas casas de madeira da Ilha
ao longe, submersas de arbustos
e de insectos, nas quais putas cansadas
por todos os homens sem ternura
de Lisboa ali vinham beber
os últimos champanhes de gasosa,
à maneira de baleias agonizantes
ancoradas numa praia final,
movendo de tempos a tempos
as ancas ao ritmo de pasodoble
de uma angústia indecifrável.

- António Lobo Antunes
in Os Cus de Judas, Dom Quixote

2 comentários:

Ines Cisneiros disse...

lembras-te de ter dito que tinha 3 livros em suspenso? Um deles é este. ;)*

LP disse...

São interessantes estes posts: o que é poesia? o que é prosa? o que é meu? o que é teu? E, se calhar, não vale a pena perder muito tempo a responder...