segunda-feira, janeiro 11, 2010



Já algum tempo que desejava apresentar aos meus leitores, sobretudo aos leitores de poesia, esta revista, CRIATURA, organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, com o apoio da Associação Académica.
Por várias razões:
o mérito da iniciativa, num momento em que todos se queixam de que é difícil publicar poesia, ninguém compra livros de poesia, ninguém lê, etc.
e pelo que o esforço revela de um entusiasmo não perdido, o mesmo que outrora, na mesma Associação Académica, nos anos 60, permitiu que se criasse um grupo de teatro estudantil que levava à cena peças de um experimentalismo inovador, desafiador também por vezes e nem sempre bem acolhido pela censura; faziam-se ensaios diferentes: um aligeirado para a censura, outro que já seria o ensaio geral do espectáculo concebido.
Revejo-me no espírito desta revista: inovar e criar pela escrita dos poemas, com sua linguagem própria, muito reflexo da experiência que é a dos jovens de hoje, como outrora foi a nossa;e inovar ainda pelo modelo que escolhem, de uma revista independente, de boa apresentação gráfica, bom papel, letra agradável de ler; a estas qualidades acrescenta-se ainda a pluralidade dos autores que colaboram, num conjunto de vozes bem diversas, nacionais e estrangeiras, e todas interessantes seja pelos temas seja pelos estilos.
Alguns autores colocam em epígrafe os seus preferidos: Walt Whitman, Luiz Pacheco, Nuno Júdice, outros.
A escrita feminina afirma-se coloquialmente sem recusar nem obscurecer as palavras ou imagens necessárias para exprimir alguma situação: do corpo, do eu, do outro, da cidade ou do mundo; é uma poesia liberta e viajada, uma poesia atravessada de cultura - outras culturas, outros mundos e muitas outras leituras.
Leia-se Elena Medel:

Habitat

O tecto do meu quarto é Hollywood.
Nunca ninguém
me poderá ver chorar no seu clítoris de néon.
Aconchegam-me pirilampos que se derramam em lugares distantes,
pontos de interrogação que viajam de graça,
enaltecidos por acrobatas que gozam comigo
e com as suas pegadas fulminam a Via Láctea
e o seu suor e o vestígio são a silhueta no chão
de Salomé a pontapear a cabeça do pregador:
piedade, deus frio, para a minha mesinha de cabeceira.

Filhos de Haley a destruir o meu refúgio,
Sunset Boulevard na noite escura do meu tecto.

(a autora é espanhola, esta é uma tradução de David Teles Pereira)

Veja-se como no entresonho de um quarto às escuras a viagem corre de um presente hollywoodesco sexualizado a um passado mítico como o de Salomé, figura que a história ampliou devido à decapitação de João Baptista exigida a Herodes.
Outro dos poetas antologiados oferece, com grande originalidade uma revisitação do pintor Munch (p. 113-114).
O que reforça o que eu já disse atrás sobre este fenómeno de uma nova poesia contemporânea, culta, de expressão coloquial ou directa, viajada, e que a revista Criatura nos dá a conhecer.
Parabéns e que continuem em 2010.

- Yvette Centeno
in Literatura e Arte

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