sexta-feira, janeiro 29, 2010

E acordei muitas vezes,

________________sozinho,
em quartos de hotel impessoais
como expressões de psicanalistas,
unido por um telefone sem números
à amabilidade vagamente desconfiada
da recepção, a quem
a minha bagagem exígua
intrigava. Estraguei os dentes
e o estômago em casas de pasto
todas semelhantes aos restaurantes
das estações de caminhos-de-ferro,
de que a comida sabe
a carvão de coque e a lenços húmidos
do ranho já saudoso das despedidas.

Frequentei sessões da meia-noite,
de nuca arrepiada pela tosse
do solitário do banco de trás,
que lia as legendas em voz alta
para se inventar uma companhia.
E descobri, uma tarde, sentado
numa esplanada de Algés,
na borbulhosa presença de uma garrafa
de água das Pedras, que estava morto,
entende, morto
como os suicidas do viaduto que
de quando em quando cruzamos na rua,
pálidos, dignos, de jornal dobrado
no sovaco, os quais
desconhecem que faleceram e
cujos hálitos cheiram a almôndegas
com puré de batata e a trinta anos
de funcionário exemplar.

- António Lobo Antunes
in Os Cus de Judas, Dom Quixote

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