sábado, janeiro 16, 2010

Café do Hortelão I

Por este ano, são os últimos trabalhos
reclamados pelas vinhas. Os homens
afadigam-se, sabem próxima
a ceia de Natal, o breve repouso
do Inverno. No meio da lezíria
apodrece um velho tractor, modelo
Pasquali seguramente obsoleto,
destoando o melhor que pode do verde
inútil dos campos. O meu pai nunca
conseguiu ensinar-me a conduzi-lo.
Tenho alguma pena, é certo, mas
nada que chegue para justificar um poema.

Continuo a preferi as tabernas, logo
que anoitece, o álcool que deflagra
sob a canção insone de uma salamandra.
Subitamente, estes lugares deixam-se povoar
por rostos que apenas procuram uma asfixia
feliz no vazio a cores da televisão
ou (os da sala ao fundo) num jogo de cartas
que se repetirá até morrerem. Entretanto,
sucedem-se minis, abafados, tintos
alheios ao desconforto de quem trocou
a «terra» pelo pânico inodoro da cidade.

Problemas da consciência, que continua
a ser o único problema alcoolicamente
irresolúvel – e que não parece preocupar muito
o senhor Hortelão, dono do café homónimo,
que interrompe o seu sono vertical
para me servir mais uma cerveja.

Foi aqui que durante anos mendiguei
qualquer coisa menos parecida com a morte,
enquanto os homens, com idêntico entusiasmo,
falavam de podas, fodas ou de futebol.
Não sei o que lucrei nessas noites, nesta noite,
para além do calor, do abrigo, de dois ou três
apertos de mão menos circunspectos. Aprendi,
quando muito, que lucro e alma são palavras vãs.
E é de novo sem certezas que deixo a estrada
devolver-me a uma casa branca
abraçada pela ruína, quase no fim da aldeia.

Não voltarei a ver o pequeno tractor abandonado
que logo na primeira estrofe se recusou
a levar este poema para outros mais ledos lugares.

Até porque não há nada a fazer
contra o estupor bucólico de certos dias assim.

- Manuel de Freitas
in Beau Séjour, Assírio & Alvim

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