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You have to think in Casanova – “Belle Chase Hotel”
“Os segredos contam-se melhor debaixo de água.”
Foi com Maria Puig, o hermafrodita, que comecei a ouvir tango. Primeiro orquestras ligeiras, depois Gardel. Na altura, ela fazia a sua tese de mestrado sobre “Tristan Shandy”. Preparava também, em conjunto com um musicólogo e um fotógrafo, a obra “O Tango durante a Segunda Grande Guerra”. Era uma encomenda de um dos maiores grupos editoriais franceses.
No centro da sua sala havia um velho gramofone que tocava repetidamente a “Munequita de Paris”. Outras vezes “Nagasaki blues” de Mina.
Eu sentava-me no sofá e lia “What is the literature” do Sartre, ou uma revista sobre tatuagens. Ela ia mudar a agulha, eu continuava no sofá. Um dia vi no espelho do seu quarto de banho, uma frase curta, escrito a baton. Dizia só: “Um reich de leite” – A caligrafia pareceu-me sexy, e a sentença escrita muito devagar e com um pulso seguro. Não achei estranho a frase não ter verbo, não ser uma oração, mas apenas uma espécie de complemento incompleto: De quê? -Perguntei-lhe, ela sorriu e voltou a colocar a agulha no começo da música. Mostrou-me no mail algumas fotos que tinha recebido para ilustrar um dos capítulos da obra. Pessoas a dançarem em grandes salões europeus e americanos. Cadilacs com casais abraçados fora ou dentro dos carros.
Um Reich de leite?
O quê?
Como era o leite?
“ disse que era gordo”
Mostrou-me um texto seu, dividido em cinco partes. Explicou-me que fazia parte de um projecto que tinha para uma novela fragmentada.
1.Fizemos amor durante muito tempo: Eu, um homem ou uma mulher; e ela, uma mulher ou um homem. Os nossos sexos eram uma sugestão e pareciam uma corrente tropical. Não eram os orgasmos que levantavam a alma, mas o calor e a respiração – e a Munequita de Paris – no auge de um orgasmo múltiplo de uma estrela suicida com baton a mais. Éramos essa estrela reflectida no espelho barroco de um submarino .Levantei-me e abri a boneca russa, dentro estava outra boneca, abri a outra boneca, e abri outra e outra e todas as bonecas que estavam uma dentro das outras como memórias tripartidas. A última boneca abri com a boca e sei que isso o excitou. Dentro da boneca estava uma mortalha. A mortalha tinha escrito um poema de Walser. Era inédito, como qualquer acto humano. Ele enrolou nela um bocado de tabaco negro e ficou com atenção ao fumo. Disse duas ou três coisas sobre a perenidade, o gesto humano, não sei o quê sobre África. Foi até junto do gramofone e meteu a música do começo.
2. Imaginei um país neutro com todos os seus leiteiros a levarem as bilhas nos caminhos de terra. Os leiteiros a cantarem que – O seu país não se mete em confusões - Imaginei o país neutro com o seu povo trabalhador que semeia os campos de trigo e que colhe o trigo e do trigo faz farinha, e com farinha faz o pão que alimenta o povo: Dos operários aos ladrões, dos antiquários, aos guardas florestais. Imaginei todos os seus bosques recheados de prostitutas. Imaginei-as a enrolar o preservativo no toalhete. A passarem o toalhete no rabinho dos impotentes para que o seu orgasmo seja em tudo pujante e nacional.
Imaginei todos os pedófilos do meu país a olharem para o mar, a verem-no masturbar-se nas pernas salgadas das meninas, em ondas-coredeirinho, que umas vezes trazem búzios e conchas pequenas. E que de vez em quando trazem estrelas e outras vezes não trazem estrelas.
3. Os funcionários internaram a rainha na ilha de Cápri. Aí a rainha chorava cal viva porque morrera o seu amigo. Uma lenda antiga dos pescadores do golfo de Nápoles explicava melhor, que na impossibilidade da rainha chorar algo líquido, as estrelas-do-mar começaram a aparecer em grande número nas praias entre Herculano e Nápoles. De manhã todos encontravam as praias cheias de estrelas-do-mar. Noutras manhãs encontravam as praias cheias de soldados. O mesmo fenómeno se passava na Normandia.
4.Eram grupos de meninos e meninas que encontravam as estrelas-do-mar, e as, viravam ao contrário para lamber a parte branca e adocicada que era o seu choro: Um liquido espesso, como o sémen dos cavalos-marinhos. Um choro que parecia leite gordo e doce com muita nata, como o leite das baleias. As meninas metiam as pontas das estrelas nos ouvidos e ouviam as histórias da Rainha internada em Cápri: Estávamos no início da guerra.
5. Era uma espécie de leite, mas não era bem leite, era segredo líquido e quente de uma rainha. O leite sabia também a outras histórias mal contadas. Porque as estrelas-do-mar sabiam muitas histórias sobre a emigração ilegal de África para as Canárias. Muitas vezes espreitavam a boca roxa, com os lábios grossos de um nigeriano inchado pela água, que se tinha deixado ir ao fundo. Mas não é só isso que as faz chorar.Sabem também boas histórias sobre a guerra que contam aos meninos que as descobrem pela manhã. Uma delas, é a de um capitão de um submarino francês que em 1940 desceu ao fundo do mar do Norte para uma missão de defesa da costa. Desligou o radar e forrou o tecto do submarino com papel celofane azul celeste. Colou nele muitas estrelinhas que picotou de uma cartolina dourada. Depois de forrado o tecto do submarino, o capitão pediu que lhe metessem no seu interior um espelho barroco. Dois tripulantes trouxeram-no para o espaço central. Depois os dois tripulantes embebedaram-se, o capitão ajeitou a agulha do gramofone e começou a ouvir a “Munequita de Paris”. Morreu numa espécie de guerra privada. Todos esses segredos, tornavam o choro das estrelas mais espesso, gordo e saboroso, como se fosse leite condensado: memórias de guerra que as raparigas de Cápri lambiam, ou usavam como gel no cabelo para seduzir, com o seu cabelo curto, um ou outro amigo de quem gostassem mais.
Nuno Brito
You have to think in Casanova – “Belle Chase Hotel”
“Os segredos contam-se melhor debaixo de água.”
Foi com Maria Puig, o hermafrodita, que comecei a ouvir tango. Primeiro orquestras ligeiras, depois Gardel. Na altura, ela fazia a sua tese de mestrado sobre “Tristan Shandy”. Preparava também, em conjunto com um musicólogo e um fotógrafo, a obra “O Tango durante a Segunda Grande Guerra”. Era uma encomenda de um dos maiores grupos editoriais franceses.
No centro da sua sala havia um velho gramofone que tocava repetidamente a “Munequita de Paris”. Outras vezes “Nagasaki blues” de Mina.
Eu sentava-me no sofá e lia “What is the literature” do Sartre, ou uma revista sobre tatuagens. Ela ia mudar a agulha, eu continuava no sofá. Um dia vi no espelho do seu quarto de banho, uma frase curta, escrito a baton. Dizia só: “Um reich de leite” – A caligrafia pareceu-me sexy, e a sentença escrita muito devagar e com um pulso seguro. Não achei estranho a frase não ter verbo, não ser uma oração, mas apenas uma espécie de complemento incompleto: De quê? -Perguntei-lhe, ela sorriu e voltou a colocar a agulha no começo da música. Mostrou-me no mail algumas fotos que tinha recebido para ilustrar um dos capítulos da obra. Pessoas a dançarem em grandes salões europeus e americanos. Cadilacs com casais abraçados fora ou dentro dos carros.
Um Reich de leite?
O quê?
Como era o leite?
“ disse que era gordo”
Mostrou-me um texto seu, dividido em cinco partes. Explicou-me que fazia parte de um projecto que tinha para uma novela fragmentada.
1.Fizemos amor durante muito tempo: Eu, um homem ou uma mulher; e ela, uma mulher ou um homem. Os nossos sexos eram uma sugestão e pareciam uma corrente tropical. Não eram os orgasmos que levantavam a alma, mas o calor e a respiração – e a Munequita de Paris – no auge de um orgasmo múltiplo de uma estrela suicida com baton a mais. Éramos essa estrela reflectida no espelho barroco de um submarino .Levantei-me e abri a boneca russa, dentro estava outra boneca, abri a outra boneca, e abri outra e outra e todas as bonecas que estavam uma dentro das outras como memórias tripartidas. A última boneca abri com a boca e sei que isso o excitou. Dentro da boneca estava uma mortalha. A mortalha tinha escrito um poema de Walser. Era inédito, como qualquer acto humano. Ele enrolou nela um bocado de tabaco negro e ficou com atenção ao fumo. Disse duas ou três coisas sobre a perenidade, o gesto humano, não sei o quê sobre África. Foi até junto do gramofone e meteu a música do começo.
2. Imaginei um país neutro com todos os seus leiteiros a levarem as bilhas nos caminhos de terra. Os leiteiros a cantarem que – O seu país não se mete em confusões - Imaginei o país neutro com o seu povo trabalhador que semeia os campos de trigo e que colhe o trigo e do trigo faz farinha, e com farinha faz o pão que alimenta o povo: Dos operários aos ladrões, dos antiquários, aos guardas florestais. Imaginei todos os seus bosques recheados de prostitutas. Imaginei-as a enrolar o preservativo no toalhete. A passarem o toalhete no rabinho dos impotentes para que o seu orgasmo seja em tudo pujante e nacional.
Imaginei todos os pedófilos do meu país a olharem para o mar, a verem-no masturbar-se nas pernas salgadas das meninas, em ondas-coredeirinho, que umas vezes trazem búzios e conchas pequenas. E que de vez em quando trazem estrelas e outras vezes não trazem estrelas.
3. Os funcionários internaram a rainha na ilha de Cápri. Aí a rainha chorava cal viva porque morrera o seu amigo. Uma lenda antiga dos pescadores do golfo de Nápoles explicava melhor, que na impossibilidade da rainha chorar algo líquido, as estrelas-do-mar começaram a aparecer em grande número nas praias entre Herculano e Nápoles. De manhã todos encontravam as praias cheias de estrelas-do-mar. Noutras manhãs encontravam as praias cheias de soldados. O mesmo fenómeno se passava na Normandia.
4.Eram grupos de meninos e meninas que encontravam as estrelas-do-mar, e as, viravam ao contrário para lamber a parte branca e adocicada que era o seu choro: Um liquido espesso, como o sémen dos cavalos-marinhos. Um choro que parecia leite gordo e doce com muita nata, como o leite das baleias. As meninas metiam as pontas das estrelas nos ouvidos e ouviam as histórias da Rainha internada em Cápri: Estávamos no início da guerra.
5. Era uma espécie de leite, mas não era bem leite, era segredo líquido e quente de uma rainha. O leite sabia também a outras histórias mal contadas. Porque as estrelas-do-mar sabiam muitas histórias sobre a emigração ilegal de África para as Canárias. Muitas vezes espreitavam a boca roxa, com os lábios grossos de um nigeriano inchado pela água, que se tinha deixado ir ao fundo. Mas não é só isso que as faz chorar.Sabem também boas histórias sobre a guerra que contam aos meninos que as descobrem pela manhã. Uma delas, é a de um capitão de um submarino francês que em 1940 desceu ao fundo do mar do Norte para uma missão de defesa da costa. Desligou o radar e forrou o tecto do submarino com papel celofane azul celeste. Colou nele muitas estrelinhas que picotou de uma cartolina dourada. Depois de forrado o tecto do submarino, o capitão pediu que lhe metessem no seu interior um espelho barroco. Dois tripulantes trouxeram-no para o espaço central. Depois os dois tripulantes embebedaram-se, o capitão ajeitou a agulha do gramofone e começou a ouvir a “Munequita de Paris”. Morreu numa espécie de guerra privada. Todos esses segredos, tornavam o choro das estrelas mais espesso, gordo e saboroso, como se fosse leite condensado: memórias de guerra que as raparigas de Cápri lambiam, ou usavam como gel no cabelo para seduzir, com o seu cabelo curto, um ou outro amigo de quem gostassem mais.
Nuno Brito
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