Em tudo maltratado está o encanto
Luis Cernuda
Um copo de água e um cigarro,
um céu próximo, inchado, e a chuva
que caiu por instantes e dá a beber
sombras umas às outras. Molhamos
as mãos e damos a cabeça, docemente
vencidos, sentados a olhar. Na pele
marcas, manchas, coisas escritas,
um sono agarrado e agredido
que me deixa às voltas como de lá
p’ra cá, entre sonhos sem significado
nem grande imaginação.
Novembro encontrará com este dia
um fim discreto. O sol afunda-se
daqui a nada do outro lado
destas casas, deixando-nos apenas
o envenenado e estreito recorte das ruas,
um pacto de treva nuns jardins remotos
onde recupero sentidos, a tarde a rir-se
baixinho e mesmo os pássaros
só piando para mandarem calar-se
uns aos outros.
Esta cidade parece saber tudo de mim,
vejo-a retratar-me num breve reflexo
quando passo por uma montra,
branco, alto, desinteressado, olhos
de um escuro entorno,
o casaco que acho feio mas de que
hoje gosto tanto e umas poucas flores
envelhecidas, apanhadas à memória,
pálidas contra as pintadas na tira
de azulejos que orna o interior do café
Três outros e eu, sem chegarmos
à conversa, uma linha quase fechada
e a luz aborrecida inventando
para nós umas poucas cores sujas.
O vento deve saber o que procura,
e insiste desenterrando recordações
enquanto a tarde já vai chamando
pela noite, um movimento se abre
noutro e, talvez porque não encontro
as palavras, o silêncio parece ter
as mãos em tudo.
Os anjos sabem já de cor a minha
última estrofe, quanto a eles
não absolve nada. Hei-de escrevê-la
assim mesmo (como cansar-me de
dizer seja o que for?), não tenho
mais nada.
A ideia, se houve uma, não foi
elevar fosse o que fosse, a literatura,
de resto, que se lixe, e o poema
também. Meses a arrastar a musa
pelos cabelos e depois disso tudo
só desejo a sorte dos poetas menores.
Mera vadiagem cultural entre arredores
de silêncio, colagens e composições,
um pequeno envelope cheio de
fotografias tristes entre vagas, incertas
inscrições, legendas quase
apagadas – data, hora e local,
uma canção ao fundo, uma sensação
– só o que me foi possível reter.
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