quinta-feira, dezembro 03, 2009

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Carla Miguelote:
Na ocasião de “Era depois da morte Herberto Helder”, já haviam morrido Carlos de Oliveira, Ruy Belo e Jorge de Sena. Entre esse poema e “Em tempo alheio”, morreram Luiza Neto Jorge e Luís Miguel Nava. De lá pra cá, faleceram também Eugénio de Andrade e Fiama Hasse Pais Brandão. Além de todos eles terem sido seus amigos, também eram poetas que compartilhavam uma concepção de poesia que você lamenta estar sendo obliterada por muitos poetas contemporâneos. Você sente estar vivendo num tempo alheio?

Gastão Cruz: É evidente que eu não quero assumir aquele papel das pessoas que dizem “no meu tempo é que era bom e agora é tudo mau”. O que eu penso é que os valores em que eu acredito são valores que têm certa perenidade e são valores em que acreditavam as pessoas com quem eu tinha muitas afinidades e muitas opiniões coincidentes, como Luís Miguel Nava, Ruy Belo, Carlos de Oliveira. Penso que esses valores não acabaram, não se esgotaram, porque são os da poesia de sempre. Acho que Camões ou Cesário Verde certamente não teriam valores diferentes desses mesmos, os que estão na base duma alta intensidade do texto. Felizmente alguns desses poetas de quem me sinto mais próximo ainda estão vivos: António Ramos Rosa, Herberto Helder. Mas continuam a escrever e a publicar outros importantes poetas que começaram igualmente nos anos 50: Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Pedro Tamen. E há gente mais nova com quem tenho profundas afinidades. Luís Quintais é um poeta com grande qualidade e importância, revelado em 1995. O século XX português foi poeticamente muito forte. Nas novas gerações não creio que haja, por enquanto, em número equivalente, poetas daquele mesmo nível. Recentemente houve uma relativa valorização de uma poesia autointitulada “sem qualidades”, de um pequeno grupo liderado por Manuel de Freitas. É um tipo de poesia que me interessa pouco, embora reconheça que existe uma certa qualidade em alguns desses poetas. Mas o conceito de real é neles, por vezes, muito restrito e simplificado. Tem-se, algumas vezes, pegado no célebre poema em prosa de Baudelaire sobre o poeta que perdeu a aura, mas acho que não o têm sabido ler, porque aquele texto é quase uma brincadeira, a aura do poeta cai na lama e ele fica sem carisma nem brilho. Eu prefiro falar (como faço no prefácio do meu livro recente de “textos críticos reunidos”, A Vida da Poesia) dos poetas dos quais irradiava uma luz, aí também não separando o autor da pessoa. Não quer dizer que não possa ter havido grandes escritores que fossem, pessoalmente, desinteressantes. Mas os poetas que conheci e admirei, todos tinham um brilho e uma intensidade como pessoas. Tive essa sorte, talvez. Mas não quero deixar de assinalar que já surgiram outras tendências no panorama da poesia portuguesa mais jovem: poetas que procuram novos rumos, empenhados na criação de linguagens poéticas autónomas, de elaboração mais inventiva, e afastando-se do mero registo directo das coisas banais do dia-a-dia. Entre outros nomes, poderei citar os de Joel Henriques, Daniel Jonas ou Miguel-Manso, e referir a nova revista criatura, onde se manifesta a vontade de percorrer caminhos diferentes.

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