domingo, outubro 11, 2009

Clint Eastwood & John Updike

Numa das cenas de Gran Torino, de Clint Eastwood, a personagem do rapaz (Bee Vang) fica espantada com a colecção de ferramentas que o homem velho possui e dispõe meticulosamente - cada objecto no seu lugar - nas paredes e nas bancadas da sua garagem. Como é que alguém, pergunta o rapaz deslumbrado, consegue ter uma colecção tão rica e completa de ferramentas? O velho Walt Kowalski responde-lhe com o seu típico mau génio: é precisa uma vida inteira, minorca!
Esta cena foi ontem recordada por todos; e levou um de nós até Ponto último, o livro de John Updike recentemente publicado e traduzido por Ana Luísa Amaral (Civilização). Abriu na página 87 e começou a ler para si e para os outros dois:


FERRAMENTAS



Dizei-me, como têm lucro os fabricantes de ferramentas?
Uso o mesmo martelo há quarenta anos. A chave de fendas
turva de ferrugem passou há muito tempo para a minha mão
jovem, o seu novo proprietário. Esquecidas, as ferramentas
esperam para serem usadas: o alicate, boca muito aberta,
dentes como um tubarão de banda desenhada; a chave inglesa,
mandíbulas num parafuso; a plaina ainda afiada para morder,
ondulante e cheirosa; o berbequim ainda bom para mastigar
o pinho, como um pensamento paciente; a fita métrica,
polegadas inalteradas apesar de eu ter encolhido; o esquadro
de carpinteiro, ainda inteiro e recto, embora eu me tivesse
desviado; o nível de madeira da escassa colecção
do meu pai. As suas formas persistentes impregnam a cave,
em parcimónia que envergonha a nossa vida perdulária.



E os outros dois não ouviram silenciosa nem cerimoniosamente, como talvez fosse esperado. Nada disso: interromperam e fizeram comentários, deslumbrados, como o rapaz do filme de Eastwood, com a sabedoria e a precisão de uns versos, de um poema, afinal uma ferramenta como outra qualquer, à espera de ser usada, tão útil e tão cortante como um formão ou uma serra de cortar ferro.

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