Sentada num dos bancos azuis do segundo vagão, observava, através da espessura do vidro, os rasgos de luz dourada que acompanhavam o movimento rectilíneo da actualidade. Cada segmento de luz era irrepetível - único; tornado invisível pela multiplicação genética da sua forma, prolongando esse rastilho de fogo ao qual se decidiu chamar multidão.
Só no interior do metro era possível sê-lo: imagem digital de todos os momentos. Sem seleccionar, sem conter o movimento curvilíneo dos rostos daqueles que conhecera. Revia: a geometria dos medos, a angústia que, ao persistir, pede consolação contra a natureza acidental da existência.
Eram duplos em décadas, meio século despótico aprovava-lhes a certeza de um lugar no passado de um futuro distante. E essa certeza – anatómica, biológica – era fria como o ferro depois do sangramento na bigorna. Incontestável. Inegável como o é a tridimensionalidade do tempo.
Erguendo-se, entre eles, a duplicidade da revolta: aquela que, na curvatura óssea dos pulsos, exige depuração. Engendra a intensidade bélica. Exige que se imprima no coração da multidão a consternação, a realidade de ser marginal. Eram ainda sombras fugazes. Silhuetas banhadas pela luminosidade transversal de duas margens – entre o desencantamento e o reencantamento –, ao susterem o desejo de invasão: de transbordo. E já a previsão da sentença era amplamente medida.
Os seus medidores eram, na maioria, adivinhos. Nada de estranho: num país em que todo o futuro é prontamente vaticinado, ser-se adivinho era condição essencial para se ser português. Mas, em oposição a essa forma precisa de medição, impunham-se cinco décadas de história futura. Veladas – de rosto coberto por panos negros – rindo nas esquinas do tempo. Abrindo nas suas malhas o espaço para aquele lugar: o de se ser passado no futuro.
O total desconhecimento sobre a relevância da posição é, na sua natureza mais sincera e racional, campo fértil ao crescimento, a ascensão. E eles, os que hoje escrevem, sabiam-no.
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