«As lagartixas vivem cercadas pelas crianças. Delas esperam tudo: o alimento e a morte. É um pacto, um comércio tácito cheio de enigmáticas intenções. Uma linguagem de dádiva e crueldade, pela qual pessoas e bichos fascinadamente se conhecem. Porque as crianças são lagartixas fortes que decretam as leis de relação. No silêncio amarelo e saturado da praia, iniciam o jogo ritual da cidadania. Atraem as lagartixas, mexendo de leve na areia, distribuindo num sábio acaso miolo de pão, insectos mortos, pedacinhos de gordura. Podem afugentá-las de repente com um gesto inimigo. Ou cortar-Ihes as caudas num golpe rápido, e dar-lhes depois uma bolinha de pão. Ou prender, na mão fechada, os corpos frios e aterrados. Ou matá-las, libertá-las.
Mas as crianças pagam os direitos do poder. Sujeitam a atenção: a fisionomia do seu mundo tem de adaptar-se a certas leis profundas dos bichos. Armam-se então de uma grande paciência animal, uma secreta humildade para com as forças que demarcam e condicionam o teor das suas próprias regras.
Todas estas regras se elaboram e exercem na inspiração do terrível, mas o terrível possui a sua doçura oblíqua, uma lírica sumptuosidade, uma pura exaltação. As crianças amam as lagartixas com uma crueldade cheia de paciência e pormenorizado arrebatamento.
Há uma centena de maneiras de assassinar lagartixas. Foi isto que os carrascos aprenderam com as vítimas. Por cima de cada morte urde-se um jogo subtil, onde cada propósito cria a ambígua antecipação que abre portas imediatamente fechadas. E depois possivelmente reabertas. As invenções bebem no gosto da dor, das pequenas catástrofes. A fúria corre silenciosamente para as mãos sábias, uma fúria inteligente e mesquinha. Invenções e mãos que nunca se aplacam. A crueldade inventa sem parar. Aperfeiçoa instrumentos e métodos, num estilo cada vez mais cerrado, límpido e tenebroso. Um estilo de propósitos severos, quase místicos.»
- Herberto Helder, Photomaton & Vox
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