Clichy
14 de Agosto de 1932
14 de Agosto de 1932
“Anaïs,
(…) Ainda te ouço a cantar na cozinha – uma leve e negra qualidade na tua voz, uma espécie de gemido cubano inarmónico, monótono. Sei que estás feliz na cozinha e que a refeição que preparas é a melhor que alguma vez comemos juntos. Sei que, se te queimasses, não te queixarias. Sinto a maior paz e alegria sentado na sala de jantar ouvindo-te atarefada, com o teu vestido, como a deusa Indra, ataviado de mil olhos.
Anaïs, eu só achava que te amava antes; não era como esta certeza que está em mim agora. Foi isto tão maravilhoso apenas porque foi breve e roubado? Estávamos a representar um para o outro, até o outro? Era eu menos eu, ou mais eu, e tu menos tu ou mais tu? É loucura pensar que isto pode continuar? Onde e quando os momentos mortos começariam? Estudo-te tanto para descobrir as possíveis falhas, os pontos fracos, as zonas de perigo. Não os encontro – nem eu! Isso significa que estou enamorado, cego, cego. Ser cego para sempre! (Agora cantam “Céu e Mar” de La Gioconda.)
Vejo-te a tocar a tocar discos, um atrás do outro – os discos do Hugo. “Parlez moi d’amour.” Dupla vida, duplo gosto, dupla alegria e infelicidade. (…) Sei agora que os teus olhos estão bem abertos. Há certas coisas em que nunca acreditarás outra vez, certos gestos nunca repetirás, certas dores, suspeitas, nunca mais sentirás. Uma espécie de fervor criminoso e branco na tua ternura e crueldade. Nem remorso, nem vingança; nem dor, nem culpa. Um viver tudo, sem algo que te salve do abismo, a não ser uma esperança maior, uma fé, uma alegria que provaste, que podes repetir à vontade.
Toda a manhã estive nas minhas notas, farejando através dos registos da minha vida, pensando onde começar, como marcar o início, vendo não apenas outro livro defronte de mim mas uma vida de livros. Mas não começo. As paredes estão complemente nuas… Tinha tirado tudo antes de ter ido encontrar-me contigo. É como se me tivesse aprontado para partir de vez. As manchas nas paredes salientam-se…onde as nossas cabeças descansaram. Enquanto troveja e relampeja, estou deitado na cama e atravesso sonhos desvairados. Estamos em Sevilha e depois em Fez e depois em Capri e depois em Havana. Estamos eternamente em viagem, mas existe sempre uma máquina e livros, e o teu corpo está constantemente perto de mim e o teu olhar nunca muda. As pessoas dizem que seremos infelizes, que nos arrependeremos, mas nós somos alegres, estamos sempre a rir, estamos a cantar. Falamos espanhol e francês e árabe e turco. Somos admitidos em toda a parte e atapetam o nosso caminho com flores.
Eu digo que este é um sonho desvairado – mas é este o sonho que quero concretizar. Vida e literatura combinadas, o amor o dínamo, tu com a tua alma de camaleão dando-me mil amores, ancorada sempre não importa qual a tempestade, em casa onde quer que estejamos. Nas manhãs continuando onde interrompemos; ressurreição após ressurreição. Tu confirmando-te, conseguindo a rica, variada vida que desejas; e, quando mais te confirmas, mais me queres e precisas de mim. A tua voz tornando-se mais rouca, mais funda, os teus olhos mais negros, o teu sangue mais espesso, o teu corpo mas cheio. Uma servitude voluptuosa e uma necessidade tirânica. Mais cruel agora do que antes…Conscientemente, intencionalmente cruel. A insaciável delícia da experiência.
Henry”
Anaïs Nín & Henry Miller – Cartas de Amor
Edição e introdução de Gunther Stuhlmann
Editora Caleidoscópio
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