domingo, setembro 06, 2009

“14

Acho que deveria começar a trabalhar um pouco, agora que estou a aprender a ver. Tenho vinte e oito anos e praticamente ainda nada aconteceu. Vejamos mais uma vez: escrevi um estudo sobre Carpaccio, que é mau, um drama chamado Matrimónio e que pretende provar algo falso com meios ambíguos, e versos. Ai, mas os versos pouco adiantam quando são escritos cedo! Deveria esperar-se e reunir uma longa vida, e depois, mesmo no fim, talvez se pudesse então escrever dez versos bons. Pois os versos não são, como as pessoas julgam, sentimentos (esses aparecem bastante mais cedo) – são experiências.

Para conseguir um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voam os pássaros e conhecer o gesto das pequenas flores quando se abrem de manhã. É preciso poder recapitular caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que há muito se via aproximarem-se – dias de infância ainda por esclarecer, pais que era preciso magoar quando nos traziam uma alegria que nós não compreendíamos (era a alegria para outro), doenças infantis que tão estranhamente começam acompanhadas de tantas transformações profundas e difíceis, dias passados em quartos calmos e contidos e manhãs passadas junto ao mar, o próprio mar, os mares, as noites passadas em viagem que nas alturas se dissipavam sussurrando e voavam com todos os astros – e ainda não basta poder recapitular tudo isto.

É preciso ter recordações de muitas noites de amor em que nenhuma a outra se assemelhava, de gritos de mulheres em trabalhos de parto e de parturientes leves, brancas, adormecidas, que se fecham. Mas também é preciso ter estado junto de moribundos, ter ficado sentado junto de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos intermitentes.

E também não basta ter recordações. É preciso poder esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as próprias recordações ainda não são o que mais importa. Só quando se tornam sangue dentro de nós, o olhar e o gesto, quando deixam de ter nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então pode acontecer que, no decurso de uma hora muito rara, a primeira palavra de um verso delas se erga e delas saia.”


Excerto - “ As Anotações de Malte Laurids Brigge”, Rainer Maria Rilke.
(Edição Relógio D’ Água / tradução de Maria Teresa Dias Furtado)

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