Eram lugares miseráveis. Mas ouvia-se,
tão perto, um riacho a correr.
Tábuas que nos pregam o coração.
Joaquim Manuel Magalhães
A luz beliscava ao amanhecer,
demorando-se a atravessar o espaço
e tocar nas coisas para lhes dar começo.
Teus, os cabelos desgrenhados que
compunhas, meu era o hálito amargo
e a ressaca da pele sobre a carne
– mais difíceis de disfarçar.
Sentada na borda da cama deixaste
seguir o olhar, derramando-o.
Ias dizer qualquer coisa, mas não.
E talvez não fosse para mim.
Puxaste o cobertor aos poucos
sobre as pernas, deste-me tempo
se quisesse acrescentar alguma coisa,
mas não. Os dedos lentos e sujos
abotoando a camisa, a prendê-la
depois nas calças.
Saí. A pé e devagar, no caminho,
peguei num calhau, puxei bem atrás
e dei cabo de um vaso num rés do chão –
a planta estendeu-se à sombra,
babando-se tristemente.
Agarrei outro calhau mas esse
guardei-o entre uns versos,
para o atirar mais tarde.
Subi a casa, lavei a cara e voltei a descer
para cair num Café, ali: à esquerda, alto,
com um ar meio indefinido e sozinho,
sou eu desdobrando um postal. Vem de lá
a berraria nas margens do riacho.
Rapazes nus, da cor da terra: um a mijar
sem as mãos, os outros três
à bulha por coisas que não sei já
com quem ficaram.
Acho que foi isso a infância. Tive um cão
que me mordia, os piriquitos que esquecemos
debaixo do sol e nunca mais cantaram,
a minha mãe de costas agitando-se
sobre o lava-loiça. Lembro-me
como parava às vezes
e largava aquele suspiro terrível.
Ainda o oiço, parece uma melodia.
À tarde as mãos chegavam primeiro:
as cerejeiras e o muro logo atrás
da capela onde escrevi vários nomes
antes do teu.
Perdia os meus treze, catorze anos
com toda a pressa, achava que ia chegar
a homem. E foi por aí como agora,
em finais de julho, que te vi. O azul clarinho
do perfume primeiro, o corpo a seguir.
Trazias uma pequena flor menstruada
presa no cabelo e fingias
que não olhavas, mas também
não te afastavas muito.
Assim que deu lá nos conhecemos.
A princípio a minha letra tremida
junto à tua voz – ainda o mesmo riacho
indo para os lugares onde (disseste-me
bem mais tarde) se escondem as aves
quando o silêncio lhes acerta em cheio.
Não levou muito para que riscássemos
juntos algumas frases, eu tinha tantas
e perdia horas a convencer-me
de cada uma. Vejo bem que é ainda
o que faço. Também fiz vinte e quatro
há menos de uma semana. Agora sim,
correm, mas sem grande vontade
nem significado, os lábios caindo
suavemente sobre nada, o rosto
atingido, só vagamente familiar,
e o vento a dar-lhe, seguindo depois
no seu manso desinteresse.
É disto que me vejo a morrer,
de estender num fio as noites e roubar
peças no estendal dos vizinhos,
de uma leitura para outra, com os sons
largando as palavras, misturando-se
num sono apodrecido.
A minha vida toda não vai dar
para acabar este poema.
Não faz mal. Se isto chegar a alguém,
faltando-lhe o ar entre duas sílabas,
talvez diga que nos viu. E isso
é o suficiente.
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