quarta-feira, julho 22, 2009

Disposições de última vontade

Não me proíbam que seja o imaginário amoroso,
Nem me venham prender
À sua própria cama
Esta vaga mulher que se insinuou na minha alma
E acha o ninho gostoso.
Não me amesquinhem nem reduzam
Só ao que sou por fora e é negado por dentro;
Mas também não me lastimem como quem diz de uma casa:
«Que lindo jogo de varandas!
É pena
Que tenha o forro roto e cheio de ratos.»
Deixem-me dormir,
Dormir maciçamente e com todas as distensões
Semelhantes, no cómodo, à posição dos extintos,
E sem tirar as polainas cor de café com leite
Que usam os rapazes distintos.
Dormir! Estar pràqui quieto e atravessado
Pelos fogos que perderam a direcção dos chamuscos,
Pelos rastos dos cometas que deixaram o lume no céu
E o atilho no mar ― papagaios enormes!
O meu cinzeiro de fumador cá está crescendo;
Cá estou fazendo os versos que hão-de dar «honra às letras».
Que mais querem?
Não é este o célebre Dever e a obrigação de cada um?
Cumprida a qual — desistam
De me pedir a volta ao costumado equilíbrio,
À pacatez forçosa.
Sofro com olhos naturais
E sem sombra de arranjo
O que uma força remota tem necessidade de que eu sofra
E embebe em mim até aos copos da lúcida espada do Anjo.
E, se tenho chagas curáveis,
Cá sei porque é saboroso ir sugando o seu podre!

Peço além disso que a terra
Onde nasci ― seja ainda e sempre conservada
A uma boa distância de mim:
Para que quem lá mora tenha o tempo por si para esquecer-me —
Ou então para se lembrar cada vez mais de mim
Enquanto me torno impossível:
Mas lembrar com uma lembrança aguda e intolerável,
Que pense como o mar e seja salgada e repetida
Como cada onda que bate
No rochedo ― até lá por outras ondas seguida:
Onda que não me salva,
Porque estou longe e será para todo o sempre perdida.

E assim ficarei quieto,
Além de ficar restituído
Ao original silêncio;
E, enfim, me irei perdendo…
Porque era realmente disparate,
Como quem acha um cigarro ainda com lume, ter achado
Certo fogo que não pode de modo algum ficar ardendo.

Abram as janelas para sair o resto do fumo
E fechem a porta. Não deixem entrar ninguém
E, muito menos, poetas.
Agora sinto-me bem;
Os mortos, na verdade, são umas pessoas completas.

- Vitorino Nemésio

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