sonhei que viajava enfim para
Paris
chove
a noite entra na casa
na mesa de trabalho dois copos vazios de Suze
à frente de um poster de Artaud que demorei a
decifrar
à direita
um desproporcionado mapa-mundo onde
quase só há oceano (custar-te-ia crer também
no intricado jogo de palavras de um cartaz
na parede do lado esquerdo)
a imaginação
pode ser fatal
lembro a primeira frase de Os passos em volta
onde
querendo
se enlouquece
a estranha posição de um homem fotografado junto à
Torre de Saint-Jacques que se apresenta há muito
tapada em lento trabalho de restauro
há uma baleia perdida
subindo o rio Amazonas em direcção a quê
uma multidão em Bagdad rising from the
typewriter of William S. Burroughs
é tarde
a noite tomou esta sala de silêncio como se
fosse crude devagar pelo casco de um navio
no fundo do mar
escrevo-te desde Artaud até à saudosa
casa nos arredores de Amesterdão onde terás chegado hoje
uma casa que conheces bem onde sabes o lugar
dos pratos dos talheres a tonalidade
das estações nas janelas
a casa já não é tua mas
reconheces o conforto dos sofás
o prazer antigo de estar na sala
o avançar tímido da luz no soalho
como dizia
sonhei que viajava enfim
para Paris
falo de um tempo de espera
de um delay entre a matéria e a consciência
o éter o tempo em que vão cair as pétalas a
todas as palavras a
todas as palavras
a todas as
palavras
- Miguel-Manso
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