quinta-feira, junho 18, 2009

Teoria da decisão

Acordara naturalmente. Era raro acontecer-lhe. Sem o toque despertador, sem a voz da empregada a lembrar-lhe que daí a dez minutos estaria atrasado para ir para o emprego. Acordara e, nos segundos que se seguiram, não ouvira nada para além da sua respiração sôfrega. Afastara os lençóis num gesto rápido e mecanizado, tentando afastar as imagens com que sonhara e que surpreendentemente, pareciam não o querer abandonar. Levou a cabo com rigor todas as suas habituais rotinas. Ligou a televisão para logo a seguir lhe suprimir o som, vendo, ainda ensonado, as imagens do mundo entrarem-lhe pelo quarto a dentro, sem qualquer formalidade.

Uma curiosa dependência invadira as gentes da sua época. Diante dos seus olhos – como os de tantos outros dependentes – passeavam-se imagens de gente morta ou prestes a morrer em guerras longínquas. Homens de farda, envoltos numa espessa névoa de pó, davam-lhe conta de pequenas batalhas. Gostava de ver. Gostava de cheirar a morte pela manhã. Embora todas essas mortes lhe fossem tão queridas como a morte do seu vizinho de cima, de cujo desaparecimento, só se dera conta dois meses depois.

A verdade é que, naquela manhã de Fevereiro, matar-se era uma ideia tão vaga como a vontade de beber café acompanhado de um cigarro. De manhã ninguém morre. Apenas os outros podem morrer de manhã.

Tendo terminado os seus rituais, vestiu o seu casaco de fazenda e saiu para a rua. As ruas esperavam-no sempre. Com os seus barulhos e silêncios imperceptíveis, com os seus cheiros – todos eles tiranos na hora de se fazer sentir – com os seus repetidos convites a uma existência gloriosamente supérflua. Sabia-lhe bem. Sabia-lhe terrivelmente bem andar pela rua. Sentindo que sim: que a vida nos espreita em cada esquina; em cada pedra da calçada já desgastada; no gesto esfíngico da estátua no centro da praça; nas cartas que os velhos jogam. Matar-se não estava obviamente nos seus planos. Mas era ainda dia.

Quando se deitou pouco depois das 23 horas, notou que não conseguia adormecer. Existiam ainda resquícios de imagens. Alimentou-as oferecendo-lhes toda a sua atenção, na esperança que, ao serem observadas intensamente, se extinguissem. Como se fosse possível existir um fim que vem com o cansaço, com a extenuação total e absoluta dos sentidos.

Ligou de novo a televisão. À sua frente tomou um e outro comprimido para dormir. Horas depois ainda desperto, continuou, num gesto cansado, o processo. Um a um tomou-os todos. A caixa estava agora vazia. Talvez uma caixa suficientemente vazia chegasse para matar a noite. Morrer é um gesto solitário. Morreria acompanhado pelos mesmos mortos que, pela manhã, lhe entraram no quarto. Sabendo que ele nunca seria o tipo de morto que acordaria os vivos na manhã seguinte à sua morte.

Morrer seria apenas uma casualidade. Um acontecimento aleatório na teia dos acontecimentos prováveis da sua vida.

Nada mais que isso.

- Beatriz Hierro Lopes

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