Os copos de vinho vermelho rodavam pelas mesas. Sob dois travos de conversa usurpava-se o copo do vizinho imprimindo diferentes marcas de batom ao longo de toda a circunferência vítrea. Os rapazes beijavam os lábios das mulheres através do vidro, contendo um ardor que lhes nascia do lado errado do desejo. Elas riam. Alto. Como a vida deve rir. Eles sorriam. Sustendo a inevitabilidade do gesto ao colocarem as palavras à frente dos olhares. Como os rapazes devem fazer perante as mulheres.
Corriam cigarros sobre as mesas, passando de mão em mão. Acariciados por dedos longos, finos e femininos, para segundos depois serem assassinados na dureza com que o indicador pressiona a beata no cinzeiro. Um incenso de canela aceso pela empregada russa deitava-se sob a névoa de fumo. Ela, por sua vez, já suficientemente embriagada pelo cheiro vermelho que inundara toda a sala.
Era uma festa. Uma tarde de festa. Mas uma festa velada. Comprimida pelo peso dos livros sob as prateleiras da livraria. “Os livros… os livros são putas” – disse um já depois do vinho lhe subir até a cara, enrubescendo-o. “São putas deliciosas. Daquelas que prendem um gajo para toda a vida”. “Putas de ruas longínquas como aquelas que existem em todos os lugares menos aqui.” – Continuou outro. Este demasiadamente nostálgico, como se, por detrás da imbecilidade da comparação, existisse alguma memória de uma puta suficientemente bela para ser revisitada em poesia.
Ela, sentada no centro da mesa redonda, ouvia-os. E para além deles, ouvia uma música que habitava apenas nos seus dedos. Um acordeão distante contava-lhe histórias quentes de verões luminosos. Histórias em imagem e som que ela nunca vivera. E que nunca ninguém que ela conhecesse vivera. Existiam – imaginárias – apenas, dentro de si. Arrancando-lhe do peito todas as certezas do Inverno. Registou num guardanapo a sua propriedade. Depois do sonho ser sonhado, ninguém o poderia roubar. Tinha o direito de propriedade. Tinha dentro da sua mão fechada a prova de que os seus sonhos lhe pertenciam. O rapaz ao seu lado apercebendo-se que ela escrevinhara algo, estendeu a mão por baixo da mesa tocando-a no joelho: “Dá-me”.
“Dá-me. Quero ler”. “Não”. Ele insistiu – “não sejas assim” – em poucos segundos já todos a olhavam, todos queriam ler o que escrevera no guardanapo. Agarravam-na – oh! Como ela gostava de ser agarrada – ecoavam gargalhadas. Ela fugia-lhes, escondendo-se atrás de um e de outro. Eram, ali, crianças. E como adoravam ser crianças! A tocarem-se indiscriminadamente em todos os pontos do corpo. Primeiro as mãos, uma contra a outra. Depois o braço à volta da cintura e, por fim, os corpos encostados um no outro, contra uma estante. A presa domesticada incapaz de fugir – sem querer fugir. Um olhar que toca, que beija, que cheira o desejo. O mesmo que naquele momento deixa cair as palavras escritas aos pés do seu usurpador. “É meu agora!”.
“Podes ficar com ele mas não o leias, por favor!”, “O que lhe faço então?”,“Guarda-o. Um dia lês, hoje não.”. “Sofia. És uma lírica” – disse-lhe ao esconder o papel dentro de um livro. “Este, ninguém compra. Não é uma puta fácil.” – riram. “Um dia voltaremos aqui. E quando fores já velha, todos veremos qual foi a grande pérola de sabedoria que Sofia Almeida, a Poetisa, escrevinhou bêbada no dia 24 de Junho de 2000, obrigando todos os intervenientes a caçá-la, reduzindo-os a livrescos saltimbancos". "Ai sim, Sofia! Nessa noite pagas a bebedeira a todos nós. Só o vinho nos vingará!”.
Sim. Fora tudo em 24 de Junho de 2000. Nove anos separam-na daquela tarde. Um novo copo de um vinho que ainda não era nascido à uma década atrás, aquece-lhe a garganta e torna-lhe o pensamento veloz. O olhar da memória mais atento. E vê-se a si e aos outros. Vê a “última ceia” deste novo milénio impregnada de verdade. A derradeira comunhão só poderia ser revisitada pelas crianças da sua geração, desta maneira: entre álcool, fumo e sonhos registados.
Sonhos com prazo de validade curto: uma hora bastava-lhes. Uma hora era o mundo. Uma hora que aglomera em si tantos minutos e segundos impensáveis. Uma hora. Mas essa hora, o algarismo mágico que todos os dias se repetia incansavelmente, não chegara ainda. Aprendera que a mesma hora se repete inefavelmente durante toda uma vida, ignorando a que hora é que estava destinada.
Naquela mesa tinham-se sentado quatro suicidas, um cocainómano – igualmente com tendências suicidas – e uma abortadeira convicta. Eram-no já naquela tarde, em potência, em desespero. A ceia servia apenas para lhes satisfazer a carência de morte que todos eles sentiam, acordar-lhes no centro da boca.
As palavras escritas permaneceriam entre as folhas do livro difícil que nunca nenhum deles leria. Reuniam-se casualmente quando as suas vidas o permitiam. Nunca no mesmo lugar onde tinham estado naquela tarde. E aquele papel tornara-se numa espécie de preâmbulo do fim. Quando todos os assuntos de conversa terminavam e se abatia o silêncio sobre eles, alguém dizia: “Lembram-se do papel?”.
Sofia imaginava que um dia um absoluto desconhecido, sobrevivente dos livros difíceis, talvez o lesse. Leria no centro de um guardanapo uma pequena anotação: “15:30 – Nós. Para sempre. Nós”. Talvez usasse o papel como marcador desse livro. Nada mais. Nada do que existia na sombra de “Nós” faria sentido. Desconheceria o facto que, há nove anos atrás, seis suicidas tinham sido amantes imberbes da vida. Que há nove anos, alguém numa festa secreta, os tinha visto e neles tinha encontrado a perfeição de todos os inícios. E que essa mesma pessoa – que hoje bebe sozinha – soube que aquela hora era o ponto fixo na imortalidade de todos eles.
A mesma hora que nunca seria tocada.- Beatriz Hierro Lopes
sábado, junho 06, 2009
15:30
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