terça-feira, janeiro 27, 2009

Dois dias

Debaixo de um toldo vermelho,
sentado, a cabeça pendia-lhe de um livro
sem grande assunto para a tarde que gastava já
as últimas cores. Os olhos pareciam dores,
piscavam longamente, talvez a queimar vazios.
Viu-me próximo, a fumar, e perguntou
se lhe dispensava um. Todos, respondi-lhe
como respondo sempre.
Chegou-se, e à cadeira, até à minha mesa
e falámos um pouco de coisas que as palavras
não queriam dizer. Ele estava ali
a tentar fazer férias, eu só por acaso. Abriu
o livro que eu tinha comigo, mas apenas
o tempo de ver que eram poemas, fechou-o
e não lhe notei o menor interesse.
Pensei se não teria já passado por isto.

Ainda suspirámos alternadamente
umas poucas vezes
e enfim despedimo-nos sem mais nada.
Voltaríamos certamente a encontrar-nos,
mesmo que não exactamente os dois,
eu e ele, mas outros.

Alarguei um pouco a volta do costume.
Estive na loja de conveniência, ofereci
dois euros e as pretas que tinha a uns putos
para as primeiras latas de cerveja, esmagadas
daí a nada, mesmo à saída da infância.
Andaram-lhes ao chuto, alegres,
com toda a força. Desconheciam, é claro,
que não podiam ir tão longe como isso,
nem as latas, nem eles.

Fiz o caminho para trás e no apartamento,
com vista meio disponível
para o mar, a noite veio e foi de repente.
Depois houve um arrasto silencioso
em que madruguei enquanto
um verso demorava – a explicação de uma ausência
já depois de ficar escuro. O próprio corpo
se derramou mais que a tinta nesse fazer de conta
que há sempre um jeito, quando não há.

De resto só me lembro de adormecer
contra a manhã mais burra
desde há muito muito tempo.

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