domingo, dezembro 28, 2008

Tenho medo de uma quantidade de coisas: de cães, de cavalos, das armas de fogo, do mar, da trovoada, das máquinas, das estradas à noite no campo.
- Mas porque tens tu medo de um pedaço de pão?
-Imagino - disse Estevão - que existe uma realidade hostil atrás das coisas de que confesso ter medo.
James Joyce

na verdade não há uma memória perfeita
feita de música para as minhas mãos vermelhas
que esbarram silenciosamente no barro
e prefiguram a sombra do pequeno arco de perfil
cuja música é a vaga forma da seta
e depois sobre o vermelho veio o silêncio da tempestade
o corpo tácito perfilhando o alheamento das máquinas
sei agora não é possível a remissão
a palavra certa e ainda assim quis a cor perfeita
o nó que me prendesse à terra
o vermelho e o negro o vermelho ou o negro
deve haver uma cor certa para morrer
deve haver uns sapatos certos para a hora
em que nos surpreenderem nus e sem palavras absortos
e miseráveis sobre o último bocado de pão
pensarei então ao menos estivemos juntos:
música e corpo arco dirás tristemente
deve haver uma palavra certa para viver
para morrer basta o medo
e olhando para os nós sei que o tenho
temo nunca te ter verdadeiramente
chegado a dizer aquelas palavras
que guardei na estante à esquerda da trovoada
a última cor da minha ira
na música é o vermelho
que me devora o peito
o som da música como um braço engessado
ao peito o som da música como o corpo deitado
no leito junto à janela os olhos fixos
no tecto fixos sempre à espera de estrelas
mas é esta rigidez o que nos espera
no meu peito vazio eu tive outrora
esta febre do infinito
indizível inelutável
que sangrava sem palavras a corda do arco
transformado em harpa
esta febre do infinito que só com uma palavra
afastava para longe do corpo
a futura cinza e o medo

todas as minhas memórias
todos os meus ontens
a tua última lágrima caída no meu último pedaço de pão
a última gota sobre esta fome e esta sede que
esventrei até às entranhas
sangrando e ainda de punhal em riste
toda esta solidão
temo verdadeiramente
temo verdadeiramente
nunca ter chegado a dizer
a palavra harpa arco corpo

mas afianço-te
a vertigem que as três rasgam
será sempre possível

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