segunda-feira, dezembro 29, 2008

os sinais de fogo

o normal - é haver uma aprendizagem dolorosa para a carne
a vasta tarefa sobre a qual edificámos fronteiras
muros mãos cresceram nos muros
uma memória empenada
de água amarga no sangue
excessivamente comprometido

o normal não é esse grito de ontem
que veio e silenciosamente rasgou o peito
o grande tronco do homem oco e de pé
jimbo, era tão grande que
se podia chamar jimbo o homem

e oscilou três vezes para a esquerda
justamente ao canto desta folha
olha o seu corpo arqueado e observa como tomba
como antes de chegar à amurada
vai cair com estrondo e morrer (talvez afogado) sobre o mar
tranformar-se-ia mais tarde naquele talvez josé ramos
(já não estás certo que o nome seja esse mas não importa
porque sabes do que estou a falar)
aquele que dá à costa morto
como um pássaro num romance de jorge de sena

como um pequeno pássaro
que uma maré tivesse apanhado trespassado
com uma grande mão escura e assustada
ainda antes de começar a viver apanhado

enquanto tu fumavas um cigarro
e descobres afinal e com alívio

que o quase josé ramos não és tu
que ele está nos sinais de fogo do jorge de sena
e que tu
tu levas uma vida normal
com uma pala a tapar-te o olho esquerdo
para poderes ter um corpo pontual
e uma rotina altamente produtiva
mas rasgas por vezes as linhas com que prometeste
manter amarradas as cicatrizes de outro tempo
amarradas e debaixo de olho morto, o corpo
de jimbo alastra na água
e procura a tua sombra para sua sombra

eis o normal:
o normal é morrer alguém sempre que escreves
pontualmente morrer alguém
para que o silêncio de catedral que se exibe dentro de ti
na poeira dentro de ti
e finge que dança para que outros vejam e ouçam
possam viver
não escutas já é o corpo de josé ramos
que morreu e já não navega
nem sequer já conversa

a memória dele
é o teu cruzar de ombros indisponível para a vida

o normal - era eu ter ficado na terra
e ter feito muitos filhos de terra
para a terra
rebolando no chão
crescendo sujos de lama
justamente sujos de lama
mas eu sou um daqueles filhos de puta
que nem se dá ao trabalho de passar a vida a escrever
sempre o mesmo lugar
a dar à costa como se tolhido
sempre pela mesma maré

eu sou um daqueles filhos de puta
que passa a vida a escrever sempre a mesma coisa
a mesma sombra recortada sobre o mais alto rio
e depois contra a mais alta vida
dia após dias à espera que a pálida sombra se suma
se una sobre outra sombra numa pose mais ou menos bela
mais ou menos musical que não imite as cicatrizes
que trago marcadas debaixo de olho

a sombra como um sorriso que se escapa
como um rosto esquecido deixado para trás
na neblina rumorosa a vertigem das coisas normais
quotidianas: fome sede trabalho cordas corpo
a vertigem das coisas normais até à náusea

normal não seria que todo o teu corpo
se convertesse num grito
no canto escurecido que rasgasse de vidro o peito oco
cinco dedos as mãos crispadas sobre a mesa e depois o grito
o gripo para rasgar o tempo para lavar esta memória podre
de debaixo dos olhos o grito como o choro
o homem que a água vomita
o homem peixe demasiado grande apodrecido
pela água pequena e triste cuspida no choro
o grito para chorar o.

mas pelo grito não morreria jimbo
tive em tempos um grito que podia
incandescer todas as caixas de música

cinco dedos mais cedo na mão em que a mesa se apoiou
e tu terias conseguido escapar à noite

variatio in: persona

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