quarta-feira, outubro 01, 2008

Águas Profundas

Jean Clemens
afogou-se na banheira
no dia de Natal.

Pobre menina
com os olhos ausentes
e a boca cheia de espuma.

Pobre Ofélia
flutuando num lago
de porcelana branca,
rodeada de grinaldas natalícias.

Águas profundas,
os barcos de vapor
sulcando o Mississipi,
e a pobre Jean Clemens
recordando a sua infância
quando o Pai Natal
deixava prendas
para ela e para as suas irmãs,
e transformavam numa sala de brincar
a biblioteca do pai.

Águas profundas
para que possa
navegar a ficção
e só as palavras
desenhem o seu cenário.

Jean Clemens
que regressou de um exílio
de esquecimento e hospitais,
que só queria
desenvolver os brinquedos de memória
que deixou por baixo da árvore,
afogou-se.

Afogou-se sem se dar conta,
sem poder despedir-se da vida,
mordendo a língua
e fechada num corpo
desfeito em convulsões.

- Ana Merino
(tradução de David Teles Pereira)

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