Já sentiste o cheiro a vómito
entre as páginas de um livro,
uma sensação de náusea à medida que lês
instruções para as demoras de um corpo,
às vezes tão próximo do teu,
um corpo ancorado
ao adiamento de um velho desejo?
Sem planos nem nada muito combinado,
estivemos num café que abriu aqui perto,
à mercê de uma tristeza oferecida
como os amendoins na generosa taça
onde toda a gente mete a mão e tira quanto quer.
Ficámos depressa sem conversa nem dinheiro
– a caixa de multibanco e o coração, os dois
coincidiam, fora de serviço.
Então fomos ao cinema ver o novo
dos irmãos Coen, e saímos depois
com duas horas mortas sem nada a acrescentar.
Eu estava a pensar e falei que deve ser aborrecido
ser crítico destas coisas, das artes e tal – arranjar um jeito
de enfiar todos os dias uma parte do mundo
nas nossas opiniões. Tu, por outro lado,
não dizias nada. Acho que sempre conviveste bem
com a sorte subjectiva que aterra nestes dias.
Deixei-te em casa e não elaboraste muito,
mas disseste-me que se quisesse podia subir.
Assim não, obrigado. (Dorme bem.) Voltei
para mim. Dei umas voltas de mãos nos bolsos,
não sei se à vontade com o frio ou se
já com segundas intenções, atrás de outro poema.
Vi um carro estacionado em segunda fila,
lá dentro um vulto à espera de qualquer coisa,
o rádio ligado chutando um techno
meio mole, perpendicular ao rumor nocturno
destas ruas. Inquieto, espiava os dois sentidos
da estrada, fazia as suas contas
de cabeça e eu não pude saber
se obtinha resultados melhores que os meus.
O semáforo, mais à frente, já não nos diz
para avançar ou parar, está intermitente,
a piscar no amarelo. O céu, pouco acima,
ameaça cair, talvez um pouco de chuva daqui a nada,
mas para já está só um vento
irregular a lamber-nos a pele descoberta.
É sexta-feira, outra que não nos levou longe
mas obrigou-nos apenas a saídas sem destino, a ir
e a voltar ao mesmo.
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