quinta-feira, abril 03, 2008

Terra Natal

I
Ainda não fugiste de casa. É ainda a mesma,
o mesmo caminho para a escola, os mesmos frutos
na alternância das estações e tu ainda preocupado
com as notas e com o que a professora dirá
na reunião de pais. Já não é a casa onde parecia
que crescias, nem voltaste a entrar na sala de aula
e as árvores não se vêem daqui mas os frutos
ainda caem no chão. Tu tiveste boas notas,
só que por alguma razão ainda estás à espera
de passar. Ainda não fugiste de casa.

II
Ainda não desisti de procurar emprego para o coração,
esse que se tornou numa desajustada referência,
um preguiçoso vazio que me cresce no peito. Nos classificados
hoje, como ontem, só querem licenciados em sonambulismo,
não encontro uma distância curta, nenhuma conveniente
entre a casa e a rua dos cafés. Um pouco mais de açúcar
no meu galão, por favor. Cá estamos à venda por preços
cada vez mais acessíveis e a cidade estende-se
como uma paisagem cheia de áreas inacessíveis,
feita para nós a partir de pequenas e demoradas
reabilitações da tristeza. Escoamos nos sentidos
menos variáveis dela por estreitas sarjas e aproveitamos
o que não está lá para desenhar estes círculos imperfeitos
enquanto a vida se conforma na cercania de um sonho
que foi ficando impossível. Está-se,
não há muito melhores maneiras de o dizer, à espera
daquele momento poético invulgar
enquanto se vão anotando outras observações
para encher o caderno. É já apenas a possibilidade
de uma imprevisão que nos move, um acidente,
um poema num dia assim, nada que nos garanta
que existimos mas de qualquer forma
uma menos concreta invalidez de outro pôr do sol,
versos para mostrar a ninguém no fim de nada,
gavetas, o que nos resta após a última carícia materna
no tempo remoto em que nem tudo queria
parecer-nos perdido.
Mas não venhas simular saudades de tempos idos
pouco diferentes destes. Que se foda a buganvília
e essas outras imputrescíveis margens
onde enquadras a tua redundante infância.
Lugares que te querem parecer distantes e que
sem terem feito mais sentido naqueles dias
te servem agora para o excesso nostálgico.
Sempre gostaste de enrolar e fumar as cinzas de um passado
com melodia por trás, aí o trazes sempre no bolso
embalado em saquinhos herméticos para as ocasiões,
mentes, e mesmo que não fosse mentira
a sinceridade não é nenhum dom, devias
sabê-lo, apenas uma corda por esticar
que se vai enrolando no pescoço.
Ainda tens um corpo que só te responde a ti,
mas fizeste-o de urgências sucessivas, e um apreço
por nadas, zeros e injustificáveis distracções.
Está-te quase a arrefecer numa morte dessas,
uma morte combinada, preparada ao pormenor
e que virá esperar e sorrir aos teus convidados.
Frequentes, pontuais adultos. Alguns saberão convocar-te
na desilusão deles e hão-de chorar-se a si mesmos.

III
São cada vez menos os que têm ofício de poeta, perdidos em Lisboa
pedindo esmola e indicações de como chegar à Abissínia.
Não se definem. Erram a errância dos vadios, os vagabundos,
os rabugentos, os fala-sós
, exemplos do que pode acontecer-te
se não viveres a tua vida como eles mandam e te puseres
a mijar fora do penico. Se não tiveres medo e todo o cuidado
acabarás por mijar ao frio com eles
aconchegando-te às sombras que aludem à abismal
vertigem que, de uma forma ou de outra, virá um dia
com um ramo de flores e um cancro ou outra desculpa
para beijar-te essa suave boca.
Ferido de insultos na praga urbana o vício lírico
nunca serviu para nada, só para começar a existir
encoraja a desobediência.
Entre as avenidas e as rotundas, encostados aos muros,
ali estão eles à espera que o sinal mude para vermelho
para irem de mãos vazias, abertas, deixar versos à janela
daqueles que circulam entre pontos e vírgulas
na lassidão da prosa diária. Aborrecidos, no trânsito.
Voltamos para casa, para um corpo qualquer
que nos sirva de lenitivo para o horror de todos estes
dias que atravessamos pelo passeio
como desconhecidos, adiando o irreconhecível cadáver
que as nossas mães não quereriam acolher no colo.
E não é que alguma coisa se explique mas talvez
porque a vida se foi revelando, passo a passo,
uma tremenda desilusão, é tão fácil agora
deixarmo-nos fascinar pela morte,
cada vez mais perto, mais perto. E no final
provavelmente
aquela que ainda será a maior e pior
de todas as nossas desilusões.

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