sábado, abril 12, 2008

Sopa enlatada de origem micaelense

Cheguei muito tarde ao quarto do hotel. Às cinco da
manhã ainda estava a ler, sem nenhum sono. Para não
pensar nas coisas tristes da vida, liguei o televisor.
E andei de canal em canal. Quando, em português, o
entrevistador disse «Senhora professora, a senhora que
é uma técnica, uma especialista em Moby Dick, o que é
que acha dos baleeiros açoreanos?»
(No rodapé estava a palavra «escritora».)
A mulher era quase toda cabeleira, sorriu, complacente
com o termo «técnica» e radiante com «especialista».
Respondeu, como se esperava, os baleeiros açoreanos
eram muito bons, muito corajosos, homens de fibra, com
H grande. Desliguei o aparelho e comecei mesmo a
pensar em coisas tristes.
Tanta gente morta. Conheço mais gente morta do que viva.
Tanta gente velha. Eu próprio. Como é que eu iria
morrer? Imaginei vários cenários. Voltei a ligar o
televisor. Ainda a professora. Tinha um laço grande no
pescoço. Um casaco pardo, com gola azul marinho. Ia
dizendo ao jornalista que, os continentais, agora,
olhavam os açorianos com outros olhos, eram mais
compreensivos. «Porquê?» «Porque, com a Europa, os
continentais sentem-se como se estivessem numa ilha,
sentem a mesma orfandade [sic] dos ilhéus.» Cortei o som.
Apaguei a imagem. Voltei a pensar em coisas tristes.
Uma amiga minha morrera na véspera. E
aquela mulherzinha tão viva, com tanto cabelo, usando
palavras, invocando em vão o nome dos portugueses. Tanta
gente a vê-la por esse mundo fora. E o dia já clareava. A
tarefa mais difícil é, de facto, passar de poeta a cristão.
(Kierkegaard quem o diz) e eu sei que é assim.

- João Miguel Fernandes Jorge

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