os autênticos rebeldes, os homens para os quais
a sua verdade última, a sua última sinceridade,
está além de qualquer dogma, não costumam
encontrar um refúgio cómodo, andam
de uma prisão para outra
Juan Luis Panero
um gatafunho que não se apaga, e pensas -
quem dera não fosse teu. Os olhos grávidos
de ramelas e de uma perspectiva seca,
começam por capturar vislumbres
de uma esquálida figura, um nado-morto,
que se senta do teu lado e te acompanha
neste pequeno-almoço tomado à tarde.
A mais importante, aliás, a única
refeição do dia.
Já não se demorará o sol e tu
não terás que esperar muito para que
os primeiros reflexos anoitecidos venham abraçar-te
e fiquem por aqui repercutindo um eco
para cada um dos teus gestos.
Nós e as noites misturámo-nos e por essa altura
deixámos de crescer em direcção à lua. Dessa superfície
nua e luminosa ficaram-nos as crateras e estas horas
sem força de erosão que passam e nada perdoam.
Nada. Já depois do café, ao juntar
mais umas palavras, para lá da nossa
temos também que aturar
a inquietação de outro desses teóricos,
que além de incapaz no que toca a elaborar
algum verso ressonante, espera ainda inculcar-nos
a sua invenção pessoal de liberdade, a energia caduca
de quem sabe explicar tudo, porém,
com tudo aquilo que sabe só nos cansa mais.
Afinal estamos a falar do quê? É precisa alguma licença
para isto, para avaliar o interior de uma habitação,
os defeitos no lambril ou o desgaste do verniz?
Não vejo como podíamos estar mais sós.
Não incomodamos ninguém, a ideia
não é essa, vamos depredando o silêncio,
cuspindo-lhe na boca, formando o caudal
de uma indiferente consciência enquanto
no corredor cambaleia uma sombra
magoadíssima, rasgada de uma ausência qualquer,
afiando o desespero contra as paredes -
mas que importância pode isto ter?
Daqui por um bocado decido que o poema
está inconclusivamente concluído, levanto o cansaço
e vou deixar os meus sacos de plásticos cheios,
junto ao lixo do resto da cidade. Preferias antes
que viesse aqui engomar o coração, arranjando-me
à pressa para ir trocar isto que sinto
por um romantismo desses em promoção,
prescrevendo a mim mesmo uma ilusão fácil,
um corpo-placebo onde afixar afectos consumados
e a sucessão rápida de metáforas para uma versão
dois em um do vazio a que pertencem
estes versos? Desculpa-me, mas hoje não.
Hoje estou mais inclinado para um certo dissabor,
quadros de penumbra onde figuras humanas
se torcem, mal retratadas, como casas demolidas
acolhendo o envelhecimento, esse processo mental
que foi confiscando todos os nossos artigos de guerra,
as fisgas com que pontuámos sem temer repreensões,
mirando adultos tristes e zangados, pessoas
que hoje nos fazem alguma companhia.
Vimos as nossas revoluções interrompidas
pela programação dos canais por cabo. Hoje
quando ligamos o rádio já não se seguem sessões
de dança e playback, mas começámos a corrigir
as letras das canções, deprimindo o entusiasmo
que connosco foi perdendo a juventude.
E já não é a timidez mas a desnecessidade
de auto-estima que nos vem servir
os melhores vinhos das piores casas.
Rompemos um sorriso entre dilações
e piadas fraquinhas, a memória de ciladas
em que nos metemos quando ainda
nos metíamos com a vida. Uma nova rodada
vem emendar os lugares vazios à volta da mesa
e sem grande ênfase sublinhamos lugares de perda
prolongando-se um jogo de cartas em que
já ninguém presta atenção
às vazas que fez, enquanto um rumor de aves cegas
vem embater contra as janelas anunciando
as obrigações que teremos que cumprir se hoje
nos deitarmos e acordarmos para o que há-de ser
o dia de amanhã.
Sem grande esmero as mãos são dois intermediários,
dois moinhos de um vento mole. Uma escreve suicídios
a meia-luz, na folha de papel, a outra conduz-me o copo
aos lábios que vão gretando sobre estes longos
ditados da melancolia. As noites ficam assim amarrotadas
por uma cultura de confissões que as não redime.
E a minha única preocupação é não ceder
a desvios inúteis para o abstracto, ou ficar
de olhar perdido nos vulgares rebocos
onde a infância está entalada.
Para oferecer - já o disse, mas repito -
não tenho nada. Os versos apenas remexem na sucata,
abanam imagens estáticas e afastam-me por momentos
dessa fraga de lençóis manchados, lesões de um amor
a que não quero emprestar mais significados.
Daqui a nada estou suficientemente esgotado
e também poderei distrair-me com essas califórnias podres
que se penduram em cada espaço da nossa publicitária
realidade. Por aí, vou-me abandonar a essa morte-
-cosmética e se não for o suficiente para me desligar
então telefono-lhe.
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