segunda-feira, abril 07, 2008

Pelos cantos dessa tua boca

Hoje quando acordei parecia que tinhas estado aqui,
ex-parceiros sexuais teus espalhados pelo chão, nus ou quase,
atirados durante o sono para fora da cama, atordoados
como eu, ficámos em silêncio a olhar uns para os outros,
envergonhados, a apanhar as beatas e cinzas, os copos
e a roupa interior. Estive a pensar em ti, por acaso, agora
já são seis da tarde e não me perguntes porquê
mas começou a chover outra vez, agitou-se o tempo
e a previsão dos próximos dias não nos livra dos aguaceiros.
Lá fora ouvem-se sirenes de ambulâncias desaustinadas
- hoje há-de ser dia de morrer para alguns - o vento
já derrubou umas quantas árvores
e parece-me que a noite, com as suas glândulas
defeituosas, virá babar-se de tristeza
sobre os corações de loiça partida, os rostos de nácar
e a pele suja, soterrada pelas camadas de vícios
e excessos urbanos. Não há como evitar
esta dormência e desapego pelo mundo, seria bom
se me invadisse uma esperança qualquer, mesmo que fútil.
Não tenho alguém como tu aqui para me acompanhar
numa derisão provocada por substâncias de esquecimento,
ácidos e alcalóides, pequenos choques eléctricos,
uns dedos de conversa sem sentido, comentários ao nojo
dos breves pedaços do que nos vai passando à frente
nas manobras de zapping, comer porcarias, ou cair
para o teu lado à espera de uma erecção. Consigo estar aqui horas
sozinho a ver se o Bach me salva, mas nestes dias também consigo
não sentir nada,
as palavras vou-as acumulando no saquinho de plástico,
sacudo-o várias vezes até me sair um verso, e o verso
não é mais que uma forma de ajeitar as coisas, decorar o vazio
das paredes deste quarto, os lugares onde já nenhuma foto tua
sabe pôr um sorriso. Falsifico a necessidade de escrever
e as musas enlouquecidas, elas vêm e rasgam-me o sorriso dos degolados,
entro pela noite alimentada a pilhas, luzes fracas a acender e apagar,
o rugido de locomotivas e o alarme dos carros
disparando sobre as Variações Goldberg
e produzindo o barulho de fundo de uma vida
pouco intencionada, um autocolante repetido.

Haverá alguém neste momento a escrever um poema
que me interesse, que me exalte um pouco?, ou estará tudo
ocupado a aproveitar cupões de desconto, a preencher
fichas de leitura ou questionários, impressos, formulários etc.,
a assistir às novelas ou aos boletins noticiosos? O que faz
o mundo inteiro num momento assim? Deste lado a cefaleia
toma conta de tudo. Imagino alguém extasiado
entre processos de escrita automática, desenvolvendo o bestiário
que lhe vem povoar as ilhas da insónia. Mastiga raiz de valeriana,
fuma e bebe litros de vinho antes de se render
a um sono inconvulso - parece-me bem. Ultimamente apetece-me
viver num estado de narcose, gritar o nome de personagens
ao espelho e ficar a falar com elas sobre estados alterados,
como a paranóia e a demência. Martelar o teclado
até aparecerem suficientes nomes, com trejeitos e vícios próprios,
gente danada com vidas pouco privadas, várias gerações
de malucos com ganas para se agarrarem a um ínvio pedaço
de universo que lhes garanta uma posteridade qualquer.

Voltando a ti, hoje lembrei-me de um episódio
que nunca aconteceu. Aquela vez em que passámos
a tarde inteira à procura de um alfaiate cego
que com a ajuda da sua velha máquina de costura
recebia encomendas num buraco perdido
na zona antiga da cidade. Especializara-se
em imitações em poliester de peças vintage,
reproduzidas a partir de um velho catálogo inglês
e tinha muita procura. Miúdas a quererem parecer diferentes
para conseguirem ser iguais. Quando saímos de lá (eu disse-te que)
parecias uma dessas garotas pin-up nos filmes a preto e branco
que ficámos de ir ver na cinemateca. Foi só mais uma das coisas
que nunca chegámos a fazer. Estavas sempre tão ocupada
com os teus sonhos a cores que a tua inteligência
começava a ficar subnutrida, era tanta merda
que metias para o futuro que esvaziaste o que já tínhamos
e foste-te aproximando cada vez mais de uma loira dessas
que entregam a vida aos anunciantes e que
mesmo com a depressão e o suicídio da Norma Jeane
ainda se convencem que os diamantes aguentam
o brilho de um sorriso, enquanto anseiam também
pelo dia em que hão-de cantar os parabéns ao mr. president
que ao apertar o laço e fechar a braguilha, bombardeava
uma dessas cidades que nem precisam de nome.
Mas para quê pôr as coisas nestes termos?
Naqueles dias os teus braços eram a armadilha onde eu
me deixava cair e no fundo talvez nunca me tenhas enganado,
foste só a rapariga que eu encontrei capaz de jurar
o mundo doirado a pílulas & preservativos.
Fodemos o suficiente - seria injusto vir agora reclamar -
passo-te ao seguinte e até lhe deixo recomendação.
Agora o que procuro é uma mulher um pouco diferente, de momento
apetecia-me fazer um filho à Marla Singer. Um miúdo que já nasça
desiludido com o mundo, com uma terrível depressão artística
e noções menos afectadas que as minhas, um puto como deve ser,
capaz de abrir caminho à catanada por entre o plástico das Barbies e dos Kens.
Alguém dessa era que finalmente há-de matar a nossa,
afastando-se da deflagração radioactiva destas ambições muito vagas
que embalaram os nossos dias numa doença degenerativa,
numa inconsciência que assusta. Gostava de vê-lo
rasgar-me os poemas, olhar para mim como faz ali o gato,
com total desprezo, pôr-se a riscar as paredes
até eu perceber que não faz mal e depois inventar
qualquer coisa de que eu nunca seria capaz - um mapa-mundi
destroçado por trilhos de mijo e queimaduras de cigarro, sei lá,
não sou capaz de imaginar a organização do caos
de que ele se haveria de lembrar. Para falar a verdade
neste momento até me sinto impotente para disparar
aquele espermatozóide. Estou para aqui de novo,
prestes a concluir mais um poema e ainda sinto
que por mais transfusões de sangue, álcool ou delírios que faça
acabarei sempre por concluir com um fraco desempenho,
um orgasmo reincidente sobre este vazio absurdo
e nada de novo para entregar à luz do dia, nenhuma criança,
nenhuma ideia, apenas o sequestre de alguns minutos
na vida de um leitor tão perdido como tu.

2 comentários:

Artur Corvelo disse...

Woody Allen: Nunca percebi nada de música clássica. Durante anos, pensei que as variações de Goldberg eram qualquer coisa que o senhor e senhora Goldberg andaram a tentar na noite núpcias.

gostei do poema, o final está catita

firmina12 disse...

esmagador. tenho que (tres)ler mais