sexta-feira, abril 25, 2008

O coração

Aquela velha, calorosa imagem:
o poeta deita ao chão o rascunho de um poema
e o mendigo, preso nos arames da vida,
pára e num instante de atenção,
desdobra o papel e lê:

aqui estão os versos que escrevem
as tuas mãos segurando o papel,
a garrafa de coca-cola com tinto até cima
guardada no bolso interior do sobretudo,
o vento frio de uma noite de novembro
que se esqueceu de te ensinar o caminho para
o abrigo mais próximo.

Volta a amachucar o papel e cospe
para o canteiro de buganvílias,
recorda o dia em que os primeiros rebentos
cobriram a extensa ferida do seu velho companheiro
de armas; a papa de sangue do rosto,
e o caule irrompendo da boca, em direcção ao céu
coberto de chumbo - um espelho da sepultura aberta
para onde caiu.

O papel guarda
o sopro do poeta; será um poema
o lugar onde o coração pára?

O mendigo repousa, no seu desgovernado passeio;
a força da bala sobre o peito é a verdade que
o papel deitado às buganvílas aceita;
O coração pára a um sinal do fogo;
assim seja.

- Sérgio Lavos, no blogue arquivo fantasma

2 comentários:

Nuno disse...

Diogo,

aproveito para duas coisas:
a primeira, dar-te os parabéns pela Criatura. Ideias destas não têm preço.
a segunda, para te desafiar. Tens um desafio no meu sítio.

um abraço [] Nuno

Abssinto disse...

Gostei muito e até me trouxe à memória o Sebastião Alba.

Abraço