sábado, abril 19, 2008

Moradas onde o homem,
depois da hipótese do nada,
se recompõe.

Jorge Gomes Miranda

Um passeio sem tema, nem ocasião ou outros planos,
medindo a corroída esperança ou chance
de que acontecesse algo de imprevisível. Ao desistirmos
de nos desviar da chuva, ela pôs-se a adornar os nossos irremediáveis
contornos e foi com uma sensação quase doce e tão triste
que os dois adoecemos esse inverno, frios e molhados.
Eram as nossas sombras que ainda ejaculavam
um qualquer delírio poético, as palavras, por seu lado,
pareciam-nos todas demasiado gastas. O verso entalado
com uma inflamação na garganta que até a saliva
tornava difícil de engolir.

Ficámos entre as usuais depreciações num estilo
bem capaz de reduzir a vida a essa pequena moral
que sempre nos bastou. Enrolávamos os cigarros contra o tempo
e ficávamos por ali, na praça de cima ou na de baixo,
colando coisas partidas, vigiando
os pássaros ressacados sob outro reles céu
de um domingo qualquer. Inventávamos mulheres
que haveriam de aparecer do nada sabendo tudo sobre nós
e descíamos a alameda rindo como se fossemos alegres,
atirando pedras aos candeeiros e fugindo,
mas ninguém estava a olhar, ninguém para tomar conta de nós
e nos castigar, apenas as ruas vazias
com a dor do silêncio e nenhuma hipótese
de protesto.

Noutras tardes entre lampejos e lamentos,
desmaios e propositadas quedas, passaríamos facilmente
por neo-melancólicos, bebendo e abusando da escrita
para impressionar miúdas. Infelizmente
houve alguém que nos mostrou
como essa impressionável audiência
só haveria de confirmar a morte sem jeito
que já sabíamos há mais tempo. É preferível
consentir noutros logros, escrever para os mendigos de côdea
que não precisam destes versos para nada e que
até os achariam chatos se os lessem. Comparamos
as nossas infecções renais e sorrisos hepáticos
com os deles, saímos a perder mas apesar de tudo
aliviados por a morte ainda não retribuir
nenhum cumprimento nosso. Com o cheiro do detergente
e da lixívia na roupa e na própria pele, regressamos
pelos mesmos caminhos com a sensação inocente
de que talvez ainda alguma coisa possa vir a mudar.

A noite desaba e porque amanhã é dia de trabalho
os corpos, outrora tão fáceis, já fecharam.
Acende-se na memória novamente o rastilho
de um corpo do dia anterior, um que cheirava a gasolina.
Suponho que agora não seja a melhor altura para lhe dizer
que sinto falta de um cheiro assim,
da possibilidade de uma combustão - é difícil
voltar atrás, despedirmo-nos melhor, mas
deve ser isso a vida, a morte, o raio que nos parta.

Encosto-me agora sem ti
à última cabine telefónica desta cidade, pareço-me
com uma personagem de um desses filmes
de que eu deixei de gostar e em que tu gostarias tanto
de aparecer, a fingir o amor ou mesmo nada
contando que te apanhem no ângulo
que mais te favorece. Regresso à morada
que te dei, sinto-me parte deste entulho urbano,
dos detritos, do lixo doméstico e industrial.

Entre despejos também estou cá para estes fins ordinários
que nos enquadram na visão de um horror cimentado. Os vizinhos
surgem de chinelos e pijama nas varanda e perfilam-se
no necrotério dos andares, têm uns fundos de olhares
mais insondáveis que qualquer distância cósmica, tingidos
pelas mais vulgares derrotas e desilusões,
tresandam
a um medo manso, insónias submissas que atiram na forma de beatas
e suspiros caindo vezes sem conta aqueles dois, três andares
antes de se apagarem numa poça lá em baixo.

Disseste-me que assim estou a preparar-me para não ir a lugar nenhum.
Acho que sim. Cansei-me de fazer e desfazer malas. Agora acredito que
também somos aquilo a que dizemos não, por isso vou variando
entre soluções em part-time, estou num estado intermitente,
imagino que talvez seja o mundo que me comove demasiado,
quero mais tempo para não fazer nada
, ficar por aí e prescindir
desses grandes feitos que vão consumindo mais vidas que o tabaco, o álcool,
as drogas e até a poesia. Pago quando posso estes meus quartos alugados
e de noite fico sentado à minha espera. Ainda escrevo

apesar da falta de sentido que sem descanso
me vasculha as gavetas. Rasgo algumas cartas e manuscritos,

faço por
ajustar contas com alguns poetas diplomados
que me deixam recomendações cheias de sensatez,
apuro esta ironia, vou pagando as dívidas literárias que contraí
e ao mesmo tempo evito todas essas árvores
ingloriamente derrubadas
e procuro aqueles
que na falta de melhores certezas escrevem
para não matar o tempo
.

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