quarta-feira, abril 09, 2008

Loja de borboletas

Estava a ver uma reportagem sobre um americano que gostava
tanto de borboletas que o seu sonho era montar uma loja
para coleccionadores. Lá enriqueceu, claro - uns anos mais tarde
com o franchising do negócio e agora é feliz para sempre (ou pelo menos
enquanto as câmaras se mantêm ligadas). Isto serve
para mostrar que tudo é possível - ou seja - não desistam já
da parvoíce que conseguiram dar como sentido para esta vida.
A mim aborrecem-me colecções e sobretudo os coleccionadores.
De uma maneira ou de outra até juntar estes pensamentos
me aborrece e com esta falta de jeito para o negócio
não me parece que vá enriquecer. Assim, deste lado do mundo,
não estou a ver como possa vir a ser feliz. Faço pouco pela vida
(no sentido americano de ver as coisas), tento não ter medo de a perder.
Procuro pedaços discretos de mobília e sento-me, as pessoas passam
e eu fico a olhar, enquanto espero que um fruto maduro
se desprenda de uma árvore que me ponho a imaginar.
Infelizmente ainda há muito que me perturba, mesmo as moscas
e outros bichos que voam em círculos e se bastam com as doses frescas
de fezes diárias. Quando bebo uns copos aprendo uns truques:
elimino astros com a ponta dos dedos, lavo as mãos,
arranjo combinações de ideias a partir das letras nas matrículas dos carros,
sinto-me suficientemente estúpido, contagiante e quase alegre.
Volto a fixar a cara das pessoas e parece-me tudo gente simpática,
até meter conversa, aí pressinto a hostilidade pelo estranho
que sou, remeto-me ao meu lugar e às considerações
sobre o horror médio com que se medem
os passos contados no movimento pendular entre o sol
e a lua. Procuro escritores estragados sob a influência
de sombras desviadas e a contaminação de um vírus
que deixe os corações encardidos, a bater em contratempo,
num descompasso melodioso. Tipos que comunguem
uma espécie qualquer de loucura, que andem por aí a pular
dos prédios com asas de papel nas costas, cadastrados
de preferência, falsos sempre, mentirosos
até ao ponto de me convencerem que andamos
com deuses nos bolsos para apedrejar a janela
das raparigas prontas a entregarem-nos a amora negra,
e foder as montras das agências bancárias que
diariamente recebem os depósitos de sangue
dos nossos heróis do charco, pobre povo, escravo.
Vou à boleia, com a pele a raspar no asfalto, até sermos detidos
por excesso de vento nas veias. Não estamos para morrer
de costas, antes um choque frontal, uma colisão
na curva do sorriso contra o camião TIR da morte.
Mais uns shots de vodka com rodelas bem ácidas de limão
para dar banho às células da carola que se levam demasiado a sério
e amanhã estaremos de de volta à página branca,
à ressaca medonha, enjoando com as confissões da véspera
enfiadas na gaveta por baixo da cama.

De momento nem me lembro o que estaria a pensar
quando me meti nisto - a estéril metafísica
estaria em saldos ou quis só impressionar alguém,
depois como se esperava veio a despedida e eu mantive a esferográfica
junto à pele. Vou evitando outros reflexos e exercito
o podre esplendor dos insignificantes corpos
que se deixam fotografar. Ando de rua para rua
e deixo os negativos nas caixas de correio ou junto às estátuas,
no ângulo de visão de turistas, aliens e outros passageiros.
Não peço nada em troca mas ainda chego a casa
e estranho não encontrar outra coisa senão o mais óbvio lixo
no meu correio.
Tenho uma caixa de fósforos, para acender cigarros e metáforas,
reciclo falhas cardíacas e pequenas exaltações, muitas vezes
não tenho outra hipótese senão inventar ou fingir e dou por mim
a pintar anjos aos apalpões e na marmelada, enfeito as paredes
de um beco qualquer, como quem sugere um je ne sais quoi profundo
para os outros ficarem a pensar nisso. No fundo o poema
vende-se por muito pouco, a paciência que o leitor lhe dispense
até se acomodar a vazios menos inúteis, lugares sem interpretação,
silêncios e outras desinfecções. Pela infelicidade que me corrige
aquele torpor, depois de tantos banhos de água fria,
vejo-me mais uma vez obrigado a agradecer
ao Manuel por nos deixar espreitar-lhe a sebenta azul,
repleta de observações relativas ao desbaste dos verdes campos
da cor do limão e até pela inspiração bastante para contrariar
tudo aquilo que já se sabe. O verso ainda me cai mole
das mãos mas às vezes até que sabe bem ao virar a página
e esquecer que caminho, sem desvios, para essa mesma noite
com arrumador de serviço que, de jornal gasto na mão e num dialecto
estrangeiro, me indica o lugar vago e escuro
onde se cala o rude português desta voz.

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