sexta-feira, abril 11, 2008

Inconsequência do lugar

Todas as cidades se assemelham,
escoadouros de ninguém,
pátios de sorrisos mortos,
gastos campos de combate.

Ficamos nisto, um corpo sem outro assunto,
afectado por uma realidade regular, diluente,
que se reduz à sensação de desterro e o torna
num boneco de arame, um mero artifício
que se deixa conduzir na goteira
de mais um fim de tarde, outra que também não tem
quaisquer garantias para oferecer. Está aí sobre a mesa,
na conta que pagas, quase mil escudos tão mal expressos
numa moeda que te arrendonda o cálculo, disfarçando a inflação
da mesma taça suja de sempre, o caldo
que há muito deixou de ser verde e que se entorna
por estes dias acompanhado de reticências, vícios e inscrições
em itálico cujo sentido deixa as palavras e vem esboroar
o próprio papel. Um poema entre as manchas do café
que terá por esta altura perdido o efeito sobre ti
e já nem a sombra debaixo do olhar te perdoa.

Recomeça. Admitamos outro exemplo - um desconhecido
que, sem atender ao horário de um serviço, a uma hora destas vagueia
com um pequeno caderno no bolso do casaco,
vem deixar a sua cédula
numa mesa de café depois de comprar no quiosque
um postal com a imagem de um lago na cratera de um vulcão,
intrigado por uma pequena nota na margem: "Não estivemos lá,
mas pensámos em ti."
O que eu quero dizer é
outra coisa. O que é que bebes?

Por um momento (e que não se repita) vamos considerar
que podemos dividir-nos entre duas categorias: os que pagam
e os que não pagam para esquecer. Além disso
há tratamentos para casos mais complexos. A lobotomia
tem bons resultados, não são poucos os que se convertem
a uma espécie de alegria perdurável - a felicidade
possível - através de sedativos. Sei que estamos a descambar,
mas de certa forma este é um registo que, sem outras exigências,
nos permite sermos sinceros.

Desculpa. Hoje já dei o que tinha passando pelas livrarias,
recolhendo decomposições do meu reflexo nas montras
de um tédio para o qual não tenho explicação. Vi-me
entre aqui e lugar nenhum, nesse reflexo que converge
num plano feio, o retorno que se definirá possivelmente
pelo efeito Moebius.
Em dias destes lêem-se de propósito alguns maus poetas,
desses que fingem as qualidades que nunca hão-de ter,
e aproveitamos a gaguez dos seus versos para dar descanso
ou sabotar a inteligência que nos resta.

E depois? Nada como um supermercado, a secção
dos congelados, a companhia de estranhos conduzindo
os carrinhos de compras em direcção a um invariável
destino. Isto a que chamamos sobrevivência tem
alguma graça se soubermos apreciar o charme
do desamparo em que vivemos. Esquecendo os processos
de transmigração e desmantelando as absurdas estruturas
de um sistema que premeia o nosso trabalho
com torrões de açucar, acabamos por descobrir
imagens tão tristes como a do parque infantil desolado.

Conclusões não servimos, mas há conquilhas, caracóis,
os tremoços e a leal cerveja. Isto para fugir à isolação das noites frias
entre aparelhos mortos, em frente à lareira
bordando e rendilhando um inútil coração.
A mim a única tarefa que me resta é olhar pelas plantas
ridículas, amorfas, rego-as e impeço-lhes a morte hoje,
adiando-a para outro dia. Também me engano, claro,
prova disso são estes poemas que escrevo para nada.

Entre as perpétuas sombras do passado que vão
debruando o nosso envelhecimento, a morte
é uma pequena ferida no céu da boca que coçamos
com a língua. É claro que o melhor seria esquecê-la
mas parece ao mesmo tempo trágico e cómico
podermos pensar coisas que já existiam
antes do pensamento.
E aí vem ela, lançada, imprevisível e estúpida
como uma punição sem prévio juízo. Claro que
face ao abismo preferimos desenhar o rosto de Deus,
um denominador para a equação que deve resultar
num paraíso encomendado segundo as indicações
e fantasias de cada um.

A nós ter-nos-á faltado um golpe de asa para esse céu
que não é de hoje nem será de amanhã, ficou
para ontem. Compilando o que quisemos dizer
só nos comove o que nem tentámos. Afeiçoamo-nos
às gralhas no texto, cada sinal inadvertido,
cada acto de confiança que virá preceder o esforço inútil
de produzir uma errata seguida de outra e no final do dia,
sem mais convicções, o espelho devolverá apenas
um sorriso fútil, um encolher de ombros,
e no silêncio seremos depositados sem nenhum álibi
para apresentar à sombra que possa seguir-nos
querendo tirar proveito da matéria triste
desta nossa investigação.

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