quinta-feira, abril 10, 2008

Il miglior fabbro

Era uma vez um poema escrito num guardanapo
ao balcão do pequeno e discreto bar do Hotel Shangri-la, lugar
onde vinham encontrar-se, às escondidas (é bom de notar), não só
romeus e julietas mas sobretudo gente suspeita que fazia por pensar
e cunhar ideias - marginais e conspiradores, apóstatas
e assassinos a soldo, um enclave de exilados e profetas sem emprego
que ali encontravam uma espécie de justiça
para os seus esforçados madrigais. Havia lá a um canto
uma velha grafonola que percorria repertórios de vozes em luto,
o inconsolável choro que se afina pelos maus tratos da vida.
Havia ainda um telefone de modelo antigo que servia apenas
para efectuar chamadas a pagar no destino. Útil mais como
motivo de decoração, já que destino era coisa em que ninguém ali
acreditava. Foi por lá que me foram recomendados os serviços de uma prostituta
uma mulher feia e doce que me ensinou a não pedir amor, mas só
um modo de partilhar a sensação de cair que é afinal "aquilo que nos aproxima".
Oriunda de um pequeno bairro de Buenos Aires embalou-me como a um filho
doente de uma erecção, deu-me cama, pão e carinho e não cobrou
mais do que o que eu tinha, o que - há que convir - foi sempre pouco.
Não me parece que vá algum dia escrever
um livro de memórias (para quê arrumar o que não passa
de uma desarrumação), ainda assim não deixarei
de falar dela aos meus netos.

Foi lá que vi pela primeira vez um homem zangado com a sua sombra,
queixava-se que ela o perseguia para todo o lado. No início de cada noite
parecia maluco, no final era o único que fazia sentido. Recusava-se a dizer o seu nome,
obrigava as pessoas a tratarem-no pelo nome da bebida que lhe estavam a oferecer.
Era um daqueles casos perdidos que nos encanta porque nos faz esquecer
de nós. Um lunático com um eclipse cerebral, como ele dizia, só bebia mesmo
o que lhe ofereciam e ofereciam-lhe tudo para lhe pagarem a alegria.
Andava para trás e para diante com uma velha caixa de música
que tocava a Sonata ao Luar de Debussy e não dizia o quê,
mas lamentava-se de ter perdido tudo. Pensei muitas vezes em falar-lhe
mas não me lembrei de um bom motivo até que uma tarde me foi dito
que se tinha irritado de morte com a sua sombra
e se tinha jogado de uma ponte para a afogar.
Morreu-se-nos
assim, sem se despedir. Nós ficámos por ali com o peso das moedas nos bolsos
sem ter quem lhes desse valor. Juntámos os trocos
e pagámos-lhe um esquife acolchoado, onde a sombra dele
se aquietou por debaixo do corpo. Pendurámos-lhe na roupa clips com notas
que ele escrevera sobre processos de exumação de cadáveres.
Enterrámo-lo e o bar foi perdendo a clientela. Fechou, não sei,
nunca mais lá voltei.

Vim reclamar o meu pedaço de chão para crescer
um limoeiro a mijo e fazer da chuva limonada. Fiz uma casa
com elásticos, cartolina e palitos. Arranjei um colchão e uma escrivaninha
onde meti uma asquerosa planta de plástico
que se debruça sobre mim enquanto vos escrevo. Só para me lembrar
que tudo o que não morre, não presta. Pratiquei com versos
a arte de abrir sorrisos a quem não tem dentes. Falhei.
Passei muitas tardes aturdido pela visão de um estorninho
às bicadas a uma bailarina de palha, era isso e um puto regular
que passava por ali a fugir com magnólias arrancadas dum jardim
desses feitos para a inveja dos vizinhos. Do outro lado da rua
havia uma velha que se ria muito e me dava os bons dias
mesmo que os dias fossem muito maus. Afagava um gato muito mole
que lhe morreu no colo sem (por umas horas) ela ter dado conta disso.
Naqueles dias eu fechava-me muito enclinado sobre mapas
e documentos de cartografia, tentando divisar um jeito
de chegar às minhas Índias poéticas. Só lançava os olhos
pela janela e via na copa das árvores pássaros de nicotina
amotinados que eu esborratava tentando fazer silêncio.
Nesses tempos fui deixando a filosofia para quem vive de esmolas,
- os que mendigam explicações - e assumi-me finalmente:
Sou poeta! Poeta porque não tenho medo de não perceber nada de nada
e ainda assim escrevo, escrevo, escrevo até me sair da pele para o papel
qualquer coisa que se pareça com uma alma.
E é claro que a alma não existe, mas as palavras no papel sim.

A poesia ensinou-me nada, ensinou-me a única lição.
Depois fiquei com os mesmos gestos de sempre, as coisas, toscas
e agrestes, a intermitência triste dos dias e o ritual de velar
pelo que deixa de ser. Passeei muitas vezes no jardim da morgue
e vi o meu corpo algumas vezes deitado de olhos pressionados
por uma morte que se engasgava com as suas próprias flores.
Há dias em que escrevo poemas muito maus, outros em que me engano,
cumprimento o desmancha-prazeres com uma vénia exagerada,
fico à espera que ele me pague um copo mas ele diz sempre
que estava mesmo de saída.
Quanto ao poema escrito no guardanapo,
dizem que era realmente bom, daqueles que
justificam uma vida inteira à procura das palavras certas. Eu não o li,
não posso confirmar nem desmentir, tenho a certeza porém
que não falava de amor ou de morte. Estamos nitidamente
a perder o nosso tempo. Do outro lado da rua já só há uma árvore de pé
que ninguém sabe dizer se está ainda viva ou se morreu. Tem-se esquecido
de dar folhas ou frutos, talvez se tenha cansado de perder tudo e recomeçar
do zero. Este poema não vai mais longe, aproveita a deixa
e esquece-se se tinha ou não alguma coisa para contar,
o poeta por seu lado não sabe como se despedir
e talvez seja só por isso.

1 comentário:

Artur Corvelo disse...

já o li 7 vezes e posso asseverar: é de génio