sábado, abril 05, 2008

Cadeia alimentar

O corpo a soro deixa-se pregar às paredes,
pequenos detalhes fixos na obsessão desgastante
do tempo. Uma ou outra visita que vem
pagar-lhe promessas, ajeitar-lhe os lençóis e confirmar
que o mundo lá fora não mudou, continua
sem outra saída. Agora qualquer conversa,
qualquer tema sem importância parece
uma oportunidade de redenção. A mão
não escreve, não há nada que não seja
o estupor em que se desfaz a sequência
de ideias que vão ladrilhando nada.

Ficou um cansaço impossível no lugar
de cada reflexo ordinário. Ergue-se com ajuda
arrasta-se até à casa de banho, deixa
um mijo quase sem cor
que acidifica as crianças pintadas
em tons suaves nos azulejos.
Verte uma realidade doente sobre outra
que o lembra cada vez menos. Dedica-se
a um inventário de contra indicações,
o que não pode e o que não deve, um manual
de sobrevivência enquanto pequenos predadores
lhe passeiam na pele.

Naquela janela suspende-se, com a atenção
que os condenados emprestam ao mundo.
Ninguém observa à distância nem controla como ele
o movimento das sombras, que deixaram já
de se repercutir na linha de obstruções
à apática luminosidade. Escapam-se
e vagueiam entre lugares fechados,
vagos escombros, um bar ou uma cave
com vista para as cidades invisíveis.
Não há melodia, nem há silêncio, era mentira
tudo isso de que ouviu falar, o sentido das coisas,
a relação profunda com o mistério, tudo
falso.

Perpassa as cortinas floridas uma terrível
infecção solar. Vendo bem as coisas, era este
o rosto que lhe seguia cada movimento,
percebendo o desvalor de tudo o que carregava,
o peso de um mundo sem resposta, peso morto,
tantas flores sepulcrais, tantos objectos
esquecidos e os espelhos onde vieram cair
olhares de defuntos ou a percepção dos sinais
concretos onde se encontra, ao longo de uma vida,
a mediação da morte. Não era outra coisa,
era apenas a morte a cuidar dos seus vivos.

A noite encerra e os putos assustados saem
pela porta dos fundos, correndo
com os chulos atrás deles. Provaram os poemas
e os corpos desenhados a saliva, o desejo, a tesão
e a experiência violenta do sexo. Mas neste momento
escondem-se no jardim do manicómio e ficam ali
sem terem para onde ir, obrigados a observar a lua
para além daquele momento de inicial fascínio,
quando começa a perder a sua redonda graça,
aparentemente inofensiva, para se transformar
aos poucos num holofote recriminador.
Não há outra profundidade no reflexo lunar. O céu não é mais
esse belo cliché mas a sua imensidão faz-lhes sentir
a vertigem da queda, a perda de toda a graça
e a inutilidade de todos os esconderijos e subterfúgios
atrás dos quais se esquivaram.

Ao vê-los ali, estupidamente jovens, torna-se
claro que quando finalmente o discurso se cansa
de andar entre labirintos, uma electrocussão gramatical
devolve o poeta a um estado catatónico,
com uma ferida que começa pelos dedos,
atinge as mãos e os braços e depois envolve tudo.
Só a morte pode estancá-la. É uma troca de favores.
O apetite acaba por se consumir a si mesmo,
num circuito primoroso que funciona perfeitamente
- alimentas-te e engordas, e debaixo dos teus pés
as larvas salivam com o teu cheiro.
À medida que envelheces,
aguardam elas a sua refeição.

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