quinta-feira, março 27, 2008

W.A.

“Não quero atingir a imortalidade pela minha obra. Quero fazê-lo não morrendo.”
Woody Allen


Sentado ao lado da janela que me retribui os gestos e as formas, num espelhar resultante da escuridão de fora contígua à luminosidade de dentro
(talvez seja sempre assim que surgem os espelhos, no sentido denotativo e conotativo, raios me partam mais as suposições),
ali, sempre ali, parado, perna cruzada com um livro, e não interessa qual, nunca interessa qual o livro, mas o acto de ler, ou apenas, e não é pouco, o acto de ter um livro, contornos faciais duvidosos, nas clareiras de um cabelo desgrenhado, comprido
(hei-de acabar careca, típica ironia),
uma espécie inacabada de Woody Allen —citadino, desastrado, socialmente incompetente, vagamente culto e inteligente, perseguido por um portfólio de obsessões pateticamente fugazes e artificiais. Tal e qual Woody Allen, também ele não era Woody Allen antes de se persuadir de que esse era o caminho, a negação digo, o caminho para, dizia, se suportar a si mesmo. Um problema de imagem como solução para um problema de objecto.
(e estas analogias matemáticas rafeiras, a quem as devo?)
Tal e qual Woody Allen, que, antes de ser o solitário poeta urbano, ou um magro escritor humorístico, era o estudante popular, ou o ávido desportista.

A verdade é que te odeio, Woody, tal como não gostamos de ver os nossos familiares com as deficiências que o ADN e um tecto comum nos forçam a partilhar; a verdade é que eu, pequeno woody allen, ou pequeno Pessoa.

(sobre quem nos vendem a intrujice do ‘excessivo racionalismo’, a pretexto de textos que menos racionalismo evidenciam do que uma indisfarçável cretinice, ou mera infertilidade, poço sem fundo de projectos babélicos a que não se vê o topo; ecléctico em tudo, sobretudo no falhanço que, se me permitem, resulta desse ecletismo, e aqui estamos, Pessoa, eu e tu, Fernando, numa petição de princípio, uma pescadinha de rabo na boca que inicia e finda com a incapacidade de colocar os pontos finais, de aceitar sem restrições a falta de qualidade ou, pior, o excesso de qualidade de letras e palavras a que melodramaticamente chamamos uma parte de nós, sendo em verdade o todo, o absoluto sem relativo. E caralhos fodam os pleonasmos e redundâncias que há já demasiado tempo nos fodem, e nos abandonam depois, indecisos, estradas que não levam a parte alguma, como estas figuras sem estilo. E os trocadilhos fáceis.)

Tal e qual Woody Allen: a inventar um simulacro de óculos de massa e calças puxadas para cima, que retire à realidade mansa (que está em ser normal) os químicos inibidores deste outro lado, pretensamente rebelde, sumamente ajavardado e inseguro.
Por isso, mal possa, irei a correr descer o estore.

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