vigia as palavras e terás o teu rebanho
disse o sineiro
Pequenos lugares de nojo
por onde nos escavamos até chegarmos ao nosso
melhor inferno. E é um cão feito à nossa imagem
que nos vem receber e nos leva por entre ruas com nomes de santos
e nos faz entrar num bordel onde ao que parece podemos escolher
de entre a variedade de olhares que se cruzam com o nosso - só que
na hesitação há alguém que acaba por nos tocar.
O cão deixa-nos ali ao cuidado de uma puta,
nos braços dessa mulher incansável, uma mulher
que nos lambe insistentemente e chega mesmo a ser agradável
de início, mas ela lambe-nos tanto a carne, tantas vezes que finalmente
nos chega ao osso, e parece então que algures pelo meio
nos esquecemos de gritar.
Aí o cão volta e leva o osso, rói
o que resta de nós
e vai buscar outro.
Em tempos também esperei
junto ao casulo uma mulher, um crepúsculo e risquei
na casca das árvores aquilo que pensava serem profecias,
que afinal não passavam de palavras tresmalhadas,
punha-me a torcer os olhos para encontrar uma linha, fazia
coincidências, como um desses arrumadores de versos,
e ria-me a alguns passos de distância do sentido perfeito do universo
com um chupa-chupa vermelho na mão, em forma
(claro) de coração. Sim
e isto voltará a acontecer-me, mas hoje não, hoje largo
as garrafas que esvazio no chão e faço-as girar à procura de um norte,
depois sigo para sul. Não sei bem em que noite foi mas lembro-me que
apostei o corpo e que o perdi para uma viúva.
Não sei se perdi de propósito, por pena, para a consolar,
mas perdi e neste momento ela segue-me
à distância inquietante de uns breves passos.
Um dia virá beijar-me durante o sono
e eu não voltarei a acordar.
Continuo a escavar o poema. Trago às costas
uma mochila cheia de páginas arrancadas nas bibliotecas,
sei de cor tantos versos e não me interessa (ou não quero saber)
quem são os seus autores. Talvez um dia pense que fui só eu
a sentir tudo isto, a tirar o mundo do contexto ou o texto
do mundo. Estou atrás de ti, leitor, à espera
que acabes de ler estes meus últimos versos.
Estou à espera porque também quero o que tu pensas.
Assim com interpelação directa e tudo
não te agrada?, posso falar de outras coisas....
Também gostava que me achasses pueta suficiente
para as tuas fantasias mais sujas - leitor, eu e tu nesta viagem
sem limites, até descarnar, até ao osso.
Hei-de oferecer-te um rodízio de horrores,
carrosséis imparáveis cheios de crianças cheias de vómito,
possessões, putos diabólicos capazes de te arrancarem o escalpe
enquanto as mães sorriem e acenam a uns bons metros
sentadas em recato no banco deste parque para as tuas diversões.
Vá, vamos, diz-me como preferes os versos
curtos
assim
a es-
correr
como
um fio
no estreito
espaço
da tua
com-
preen-
são,
ocupando
tantas pági-
nas quantas
for possível,
ou por
outro
lado, será que
podemos seguir e deixar as ideias formarem os seus horizontes,
enquanto nós concordamos ou discordamos sem nos levarmos a sério.
Como fazem os amigos, passeando nas redondezas, apenas nas imediações
disso a que se chama coração? Pois, escrevo tantas vezes coração, coração
perdoas-me isto?, sabes que é uma figura de estilo? Pois, preferes a metáfora
mas vá lá!, a repetição de uma palavra esvazia-a de uma forma tão bonita:
coração coração coração... eu gosto, tu não?
(mais um ponto pela rima?)
Está, podemos voltar ao peso das coisas sérias,
aproveitar um precipício para nos espantarmos
com o nosso eco, gritar, sem que mais ninguém nos oiça,
dizer calmamente que aqueles que bebem os seus abismos
são os afogados, e podemos fingir que nunca
ouvimos falar de adrenalina e que isto que às vezes
toma conta de nós é a certeza de que estamos vivos,
quando destas experiências não guardamos nada,
nenhuma palavra que nos salve. A lembrança da vertigem
no máximo, como uma espinha cravada na garganta,
fingimos que o nosso silêncio significa muito
até fingimos um silêncio à Herberto
ou o projecto verbal de uma habitação
no lado negro da lua, qualquer coisa
onde possa morar a poesia
ou nada mas em traços
suficientemente gerais...
E depois, já não interessa como começaste
talvez não fosse, afinal, um poema o que querias escrever.
Mas isso agora pouco importa. Que isto não seja um poema, então.
Tu é que sabes, mas antes de concluir podíamos olhar fixamente
para aquele enorme espantalho nos campos de milho
e tentar perceber se ele está realmente vivo...
Pela forma como foge - olha!, já nem sequer ali está! Podíamos falar também
do vagabundo que anda para cá e para lá com o carrinho de compras,
e não compra nada. (Concordaremos neste parêntesis -
para abreviar a coisa - que o mundo não tem valor nem merece
o suor do seu trabalho.) Vamos fingir que sabemos coisas
e não somos meros falsificadores de mitos, lendas ou, já agora, corações.
Hoje somos apreciadores de arte e não uns tristes momos,
tão tristes, parvos e chatos, à espera
que venha a morte e nos exile.
Vamos como um homem e o seu melhor amigo, o cão,
(agora podemos trocar - posso ser eu o cão
e tu o homem) vamos por aí procurar um bordel
para usares essa seringa que tens entre as virilhas
na flor negra dos conceitos e fazeres não um filho
mas um verbo de lábios lacrados,
sim, sem beijinho na boca.
E pronto, acho que é isso. Assim chegamos ao fim
(o que é que achas - mais uma rima
e, no total, dás-me uns dois pontos?)
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