um céu púrpura que fere a vista
parece tão dorido como o ar rarefeito que nos atravessa
os pulmões, aliviamos a tensão recorrendo
a infusões especiais e receitas de cânhamo,
induzimos um estado de dormência para atingir
o sonambulismo lírico
a aranha desenha-nos pequenos mundos
teias nos umbrais da percepção, a inteligência
cria bolor, cria fungos que alastram do papel
para a ventilação, infiltrando a engenheiria dos edifícios
de arquitecturas imaginárias
aos poucos
já não sofremos mais e é como quando
éramos crianças e fugíamos de casa
mas sem medo e sem sombras paternais
abre-se a caixa dos recortes e ficamos perante
um vazio só nosso, a desmesura do tédio, este fio de tear
que com as ásperas mãos nos vamos tecendo
vidas do tamanho de um erro igual,
abeiramo-nos do espelho, essa costa à qual vão dar
todas as conchas, búzios e criaturas marinhas cansadas de nadar
feridas pelo infinito e a sua fatalidade
ficamos quietos e embaciamos por dentro
temos as falésias da infância às quais sempre regressamos
buscando sorrisos esmagados pelo tempo
e vagos consolos que se foram perdendo
na geografia de outros corpos contra os quais
fomos encalhando
a lua assume o seu pedestal e eu troco o passo
desço à cidade e aos instintos violentos
arrefeço-me até ficar frio e sem cor, procuro
o hotel sem nome que fica sobre a ponte preferida
dos suicidas, com o seu parque para bicicletas, vespas e aviões de guerra
tem várias entradas e saídas e quartos ajustados
ao variável preço dos corpos malditos que ali atracam
as desiludidas putas que se desdobram
no jardim de estátuas despidas
nem me interrompem o caminho
sabem que não me atrevo, talvez contando
o castigo de mais alguns anos, talvez aí os meus olhos
tenham sorvido desespero bastante para que eu seja digno
de uma noite mais negra
e possamos então empatizar num dos quartos desta espelunca
de duas estrelas (uma delas rachada a meio)
saldando as dívidas afectivas e outras mais concretas
não passo de um espectador
tudo acontece num outro lado, numa película dilacerada
por sombras e um fundo em sépia, desenvolve-se
uma aproximação em câmara lenta
nas pontas dos pés submergem dois estranhos cor de mel
enlaçam os hálitos e formam uma nuvem prateada
de onde chovem frutos: nêsperas, damascos, dióspiros
que ao embaterem no chão deixam um caudal de sumo escuro
sangue dizes tu, eu calo-me por um breve instante
um homem de silêncio senta-se entre nós
tira o chapéu de abas, acende um cigarro, inspira longamente
e depois suspira um coração que se parte em bocados
antes de se esfumar contra o tecto cansado
do cheiro a sexo e das despedidas para sempre ou quase
habitamos a hesitação na vertigem de um crime
que mudaria tudo, passamos os dedos pelas estantes e criptas,
assinamos poemas e confissões, degeneramos
por trás de um rosto plácido, quase benevolente
e afinal somos monstros em reclusão
sem o regaço insidioso de jovens belas que nos salvem
havemos de morrer fechando a boca sobre o voo de uma fénix
e teremos quem pegue nas nossas palavras e viva por nós
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