terça-feira, abril 01, 2008

Tie your woman to your wrist

We can’t stay here
we’re starting to stay the same
we can’t stay here
we can’t stay this way

Reduz-se depressa um compromisso de inteligência
a uma clausura afectiva, ao lugar comum onde o corpo é afinal
o cinzeiro para apagarmos as nossas mais imprecisas
carências. É certo que esta
não será a última vez que acabaremos por rodear
uma mesa fabricada
em série no estrangeiro e distribuída pelo ikea
ao preço conveniente da morte -
esta bala que vem disparada no nosso encalço.
Distrai-se a antecipada paralisia
que nos há-de perfurar, com truques baratos,
a breve ilusão de uma noite que se dispõe
no tampo da mesa acompanhada dos seus vícios tranquilos,
a bebida, os cigarros e as cartas viradas para baixo, depois
é esperar que chegue a vez de cada um apostar
a vida que vai deixando de lhe pertencer
e por cima de alguns solavancos da agulha que sabe
mais ou menos o seu caminho sobre o vinil
jogar-se fora a loucura acumulada nos bolsos, a conversa (inútil),
palavras e sorrisos para calafetar a imperícia
desta contingência que é estarmos vivos
de forma tão gratuita e às vezes despropositada, -
mas sejamos menos sinceros
ou a poesia tornar-se-á tão inábil como tudo o resto,
mãos nervosas sobre o vazio. Tu nem te despediste
e a culpa deverá ser minha que não te soube
fazer dançar por baixo de uma lua tão cheia,
tão absorvente e plástica. Não bastava a cumplicidade
num crime que talvez cometêssemos um dia,
vais querer que um bandido te esventre
e concluirás dando por ti nas estatísticas
dessas certezas tão naturais que tivemos.
Que se lixe, não há nada a fazer, eu hei-de ficar especado
sobre este relógio de palavras à espera
que se alinhe um significado ou até que me chame
o apelo da minha natureza e acabarei por me desmanchar
como todo o mundo. [Por esta altura gostaria de deixar aqui um espaço
para anunciantes: Se tem um negócio ou uma empresa
e quiser colocar um anúncio nestas páginas
contacte-me directamente (já que não há maneira
de arranjar um editor a sério para estes poemas)
nos dias inúteis à hora do costume.
Não se preocupe com preços, eu sou fácil
e ainda por cima gosto de regatear.]
Hei-de vestir essa t-shirt que ainda tiveste tempo
de me oferecer, com a inscrição de um conceito
que me diz tanto como as tácitas flores
que habitam o canteiro que não cheguei a deixar
aos pés da minha janela. Fica-me tão bem este tom rosa
centralizado pelo «devir mulher», sinto-me quase, como dizer,
filosófico. Aproveita-se tudo não é? Eu até que gosto deste meu
carácter mais débil, a desavergonhada inocência
ou vergonha explícita com que amarroto a saia
que me cobria os tornozelos e onde venho escrevendo
versos afectados por uma derrota que não se deixa
viver. Gostava de saber se isto te lembra alguma coisa?
Já falhámos e nem chegámos a forjar um projecto de memória,
como posso eu carpir esta tua estratégica retirada?
Parece que não tínhamos para onde ir, além do que
estás sempre a querer sentir pena de ti mesma, assim
torna-se complicado gerir estes corações de papel
que vamos pintando com aguarelas.
Deixa-me agora tentar escrever de outra coisa,
qualquer coisa mais grácil ou não fosse sempre um bom recurso
circunstancial esta melancolia que serve de fio ao iô-iô
destes poemas. Para cima e para baixo, para lugar
nenhum. Estamos mais uma vez reduzidos a simples truques
e ao fim de vários meses a insistir parece
que mesmo eu começo a ressentir-me
deste inábil processo por onde chegamos sempre
à mesma folha branca tentando provar a um mundo
que não vale a pena, um valor que realmente
nunca tivemos. Mais tarde ou mais cedo tudo isto
será uma técnica vertida a favor de um opaco deslumbramento,
rasteiras e elogios forçados à serventia dos devolutos corpos
que vierem a espantar o nosso medo.
Explica-me outra vez como é que o Al Berto morreu.
Arranja-me outro poeta que goste tanto de militar
as nocturnas horas de prazer. Um menos gástrico
que o Manuel de Freitas que está a tornar-se
tudo o que existe, o enorme salgueiro, aliás eucalipto
negro, com a influência absurda da sua morte em aliteração
perante a enfraxia da nossa poesia portuguesa.
Explica-me a alegria estúpida da menina-larva,
prostrada perante a violência deste animal,
um lobo cego, infectado pelo cheiro dessa carne.
Ou será que vamos voltar atrás de novo
tentando apanhar um desvio que nos escapou,
cirandando pelas ruas solitárias onde quisemos
fingir afinidade e empatia com artistas psicóticos
os dissidentes sexuais e colaborar nesse infrutuoso
esquema das máquinas-desejantes. A mim,
como sabes, já não me diz muito o sucesso ou
a paranóia deste mundo a preto e branco - sempre
à procura de fixar o seu próximo cânone. Refugiemo-nos
então nesta nossa literatura menor, mas deixa-me
preferir um devir flor e falar em meninas-borboleta,
aguardando o rizoma não de um conceito mas
de uma verdadeira árvore de frutos,
algum crepúsculo extraordinário.
Também estou cansado destes longos poemas,
da sensação de petite mort que sempre se lhes segue
e sobretudo
do zumbido que contagia o meu silêncio. Estou cansado
desta dardejante ânsia sem alvo, de não saber sequer
a quem me dirijo com este solilóquio infernal,
esta falta de génio, este esforço que não basta para criar
o seu próprio mundo. Vou desistir e tornar-me
mais um filha-da-puta-de-um-advogado armado
com o código civil debaixo do braço a tentar
capturar todas as gradações de cinzento
que essa realidade suja consegue suportar.
Vou descartar a poesia como uma residência
da minha juventude, algo que teria sempre que ficar
para trás e a morte será uma mancha no horizonte
esbatido da minha vista (que começa a precisar de óculos).
Sobre alguns fins de tarde ainda vou perceber
a descida em voo picado de pássaros etílicos,
atravessando a incomensurável ausência
num olhar parado, morto como o que será meu
um dia destes, sem aviso. Hei-de ouvi-los a sacrificarem-se
contra os vidros e o coma que embacia a perspectiva desta cidade
e do seu veio negro que se espalha ao longo da nossa triste alcântara.
Ainda vou dar por mim a pensar mais algumas vezes
no apertado roteiro dos corpos que nela desembocam,
o sebo acumulado nos cantos da boca,
dos dias, todos golpeados pela electricidade nervosa,
rompendo dolorosamente, erosivos, como estilhaços
de uma terra que nunca se cumpriu. Será sempre
um revólver inexplicável a vomitar sobre a sacada
com vista para um pedaço negro de eternidade,
os nossos mais profundos (des)apontamentos.
Os suicidas ainda merecerão ser pensados
enquanto quem morre de "causas naturais"
engorda a opulenta desrazão de um progresso
que não serve as almas mas só os bolsos,
todos rotos perante um simples aceno da morte.
Ainda não será hoje, vamos ver quando me vou despedir
dos versos, deste pequeno clube sem etiquetas (?)
nem cumprimentos especiais (??). Mas prometo
que nunca abandonarei o vídeo dos rostos
suspendidos diante de um balcão ou vitrine,
besuntados de brandy, whisky ou do frescor
das simples e meigas cervejas. Adornos esses
que nos dias que correm os nossos corpos, por mais
saudáveis que queiram entregar-se à morte,
não podem dar-se ao luxo de esquecer.

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