Tornou-se espessa a saliva, concentrando-se
com o avançar da noite enquanto se compensavam
os lugares vazios com gestos cada vez mais largos
que entre amigos, reais ou imaginários,
procuram sempre escapar ao domesticado
torpor dos dias.
À volta de um desacerto de duas ou três mesas,
dividem-se momentos de um brilho artificial
e vão-se cunhando sorrisos, só afectados
pela percepção de um espectador sóbrio, deseducado,
que observa de forma recriminadora, querendo sentir
pena de alguém e que, sem se dar conta disso,
sente apenas pena de si mesmo.
A alegria aqui vai-se servindo quente,
em doses limitadas para não esfriar. As mãos
deixam-se de refúgios e vêm abandonar-se
ao longo de superfícies menos nervosas e com a desculpa
dos palitos e dos copos aprendem a destreza simples
dos enquadramentos memoráveis.
Assim nos rendemos a evidências fáceis de comparar,
projectos sem futuro, esperanças opacas e
a sincera vontade de estarmos vivos e próximos,
premiando a nossa comparência com acessos
de instantânea apreciação pelas coisas mais breves
e incandescentes.
É claro que não se pode esperar muito daqui.
Um verso pobre praticando a incerteza,
esconjurando o silêncio que é tudo o que
de verdadeiro nos restará antes do último suspiro
já cansado e do aviso de desistência - um brinde
em nome de quem não pôde estar presente.
A parte que se segue por agora já a deves saber de cor,
como sabes o número da porta por onde entraste
ou não entraste.
São corações entre aspas, não outros mas estes,
corpos que vão assinando a folha das derrotas afectivas.
Tiramos um número, assumimos um lugar na fila
e vamos deixando tudo para trás enquanto a vida,
aos poucos, se vai deixando convencer pela morte.
A morte é mais insistente do que persuasiva, entra
pelos cantos da vida, flanqueando-a, começa a aparecer
sem ser convidada - primeiro apenas para um copo,
uma conversa fora de horas, mais tarde surge
na hora das refeições, janta ou almoça
- vai-se fazendo uma presença regular.
Um dia abrimos o álbum de fotografias
e ela até já sorri nalguns dos retratos.
Faz-nos companhia passeando do nosso lado
quando estamos sozinhos, assobia distraidamente
velhas canções que não ouvíamos há tanto tempo
e assim, com uma mistura de diferentes sensações,
vai-nos lembrando que chorar nunca nos fez mal.
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