segunda-feira, março 31, 2008

Our rosy-minded fuzz

Hold ourselves together with our arms around the stereo for hours
While it sings to itself or whatever it does
when it sings to itself of its long lost loves
I’m getting tied, I’m forgetting why

Era fácil perder a conta das vezes que premíamos o botão play
e o Matt Berninger recomeçava a sufocar-nos com toda a calma.
Uma vez mais o álbum servia a desolação do nosso ringue
onde ainda nos debatíamos já sem forças e os breves arranjos em piano
pareciam conhecer cada uma das infecções da noite
servindo para nos sepultar aos dois, no tapete, no sofá, contra as paredes
enquanto fodíamos meio bêbados ou ficávamos a olhar, encordoados
e afinados por uma paixão feita de restos, sobras de sonhos
que haveriam de te apodrecer a carne e afastar-me para sempre dali.
Não tenho pena, não tenho nada além de uma colagem de versos
que rejeitaste. Hoje o teu nome já nem parece teu
e só em silêncio me refiro a ti. Desenvolvo o laborioso método
de esquecer o teu corpo, mergulho o meu no desfecho do que
há muito tinha deixado de fazer sentido, atiro-o do cimo das escadas
e volto a apanhá-lo no rés do chão. Saio. Desligo-me
e finjo que esqueci as regras de trânsito, procuro um coelho branco,
possivelmente atropelado e a sangrar nas ruas entre padrões
de um circuito bizarro e sujo. Não há mais nada para ver,
olhos poluídos transbordam as cinzas, lágrimas
para um mundo que passa depressa por nós
e nem repara. Somos comovidos e desiludidos e isto gasta-nos,
incita-nos à desobediência civil. Ecoam nas nossas cabeças
finais de frases, uma nova ordem: fazei todo o mal que puderdes
e passai depressa...

Esta é ainda a mesma cidade, feita toda só de cuspo, colando-nos por pouco tempo,
tempo para um verso antes de morrer, para oferecer flores de esgoto
a um corpo de contrastes, cheio de uma elegância feminina
que resume a nossa história numa sucessão de simples gestos,
quando apaga o cigarro, sorri e desaparece
levando consigo a última incerteza que a noite sustentava.
Taciturno, estoutro corpo, é uma ruína que se entrega por tudo e por nada,
fica como um saco de ossos mal decorado, à espera de ser enterrado
depois de se vencerem as suas primeiras sensações de vigor.
Os nossos depreciativos deuses vão-se rindo
à medida que tentamos de tudo para fazer da pele
uma malha sintética. Não havendo para onde fugir, são cada vez mais
aqueles que se tornam em espaço de advertising para a campanha do medo,
vendem tudo aos espelhos, chegam mesmo a vender os olhos.
E o que resta é um ou outro corpo em fuga, amputado
vivendo de incentivos químicos, às vezes livre e tantas vezes,
quando tem mais fome e sede, enxotado por alguém, enrosca-se
entre animais que hibernam e são tomados por visões impossíveis,
abismos às cores, formas abstractas que lembram anjos ou crianças
com asas roubadas. Falo-te de um animal contaminado
por uma devastação inteligente, um ser que
deixa de existir em mim e passa talvez
para o papel, para as tuas mãos com o frio, o gelo,
a dor e a prece de quem não quer ser ignorado.
Enquanto eles tentam interessar-se pelo derretimento
dos calotes polares, nós preferimos desinteressar-nos do mundo.
É óbvio que a arte não muda nada e apenas entretem enquanto estamos à espera.
Preferimos ler crónicas dos tempos em que havia quem se suicidasse
escrevendo um poema, como havia quem se suicidasse
olhando simplesmente para o mar. São os mortos
que nos fazem melhor companhia.
Os vivos organizam-se demasiado, cansam-se para nada.
Com maior ou menor grau de consciência entram na fila
para participarem no programa como crash test dummies
e arrebentam-se com um sorriso nos lábios.
O mundo continua a produzir os seus rentáveis amantes clássicos,
suficientemente desesperados para continuarem à procura de satisfação
entre um par de pernas abertas. Mas é entrar e sair,
cada vez se sai um pouco mais vazio e qualquer palavra,
qualquer gesto ou carícia é uma desculpa, porque afinal,
depois de tantos versos de amor, ainda somos só uns animais.
A máquina é que não pode parar. Nas agências literárias vão-se
revezando entre turnos, os inspirados secretários
nos seus gabinetes e gaiolas urbanas. Pesquisam-se no google,
aperfeiçoam a lerda caligrafia na mesma pesporrência de sempre
- aprumados delírios de adolescente, corpos inventados à pressa
com inflamações inoperáveis e uma queda
para desastres românticos, tudo embalado numa carga
de efervescência inane por onde brotam imagens
sobre imagens sobre o vazio. E são estas
as paredes mais firmes onde nos fazem esbarrar
enquanto lá fora correm mudos, garotos com granadas nos dentes
prestes a explodir de sentimentos para os quais
nunca tentaram achar as palavras certas, dispensam os poemas
e a teoria da literatura, prendem na própria pele
com alfinetes-de-ama todas as receitas inúteis, e qualquer
dos diagnósticos que lhes fizeram ou o que conseguiram
em câmbio nas invasões do espírito pela loucura, pelo medo estranho
que às vezes temos de morrer antes de tempo. E continua difícil isto
no feudo destas arrogantes bestas que pensam na poesia
como uma coisa que combina bem com vidas desocupadas
ou golpes publicitários. No final de cada dia espera-nos o T1 desolado.
Cozinho jantar para dois, porque todas as doses são a pensar em dois.
Como a minha parte e deito a tua no lixo. Preparo-me para o sono.
Trancado no quarto de hóspedes, o dos fundos, está o puto irreverente
entrelaçando-se numa flor em filigrana que resplandece
no escuro, um malcuquer - como ele lhe chama. Espanta
o silêncio dele e o meu dizendo em voz alta os versos que sabe de cor,
(aprecia Cesariny como mais ninguém), infunde pouco a pouco
um veneno de paixão na pele e mata-se tantas vezes,
tantas quantas forem precisas para nos fazer acreditar nele.
Sabe que nos tornámos cínicos e tristes há medida que fomos ganhando
o Jeito Para o Negócio e começámos a confundir sonhos com aspirações
sociais e até políticas, moderados, sem querer, proprietários exclusivos
dos nossos nadas. Agora temos espaço de sobra em casa para animais lestos,
menos domésticos que nós, gatos com quem nunca aprenderemos a dialogar
e que não nos fazem companhia mas apenas nos fazem duvidar.
Apanhamos flores de sombra nos jardins onde não passamos as tardes,
trazêmo-las para fazermos arranjos florais
seguindo as indicações da mulher na televisão, fazemos tudo
como deve ser até nos fartarmos. Depois, corremos os estores,
apagamos a luz e agarramo-nos à violência de sentimentos
que existem dentro de nós sem explicação nenhuma,
e sem resolver o mistério acabamos por adormecer
com a sensação de termos no nosso interior
o princípio e o fim de tudo.

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