Os corpos fluviais da cidade vêm desaguar
nas primeiras moradas inúteis da tarde
entro por uma rua de torturas, passo por turistas
entretidos com as vísceras desta cidade onde nasci e hei-de morrer
numa banca de jornais nacionais e estrangeiros
vejo postais de outras cidades, Paris mais uma vez
(e eu detestei Paris quando lá fui), nunca leitor
encontrarás num verso meu incentivo para a fuga
estou mais interessado no teu quintal do que em qualquer retiro exótico
desses que nos esfregam na cara as agências de viagens
entre as paragens de autocarros, os nossos cemitérios são todos iguais
e a beleza continuará a respeitar as medidas
do nosso tempo mais livre.
A idade ao avançar vai regateando prazeres com os dias,
desfia a consciência num coma
esvaziando os bolsos e atirando fora
os calhaus utópicos com que racharias a cabeça
de meio mundo.
Repatriados para as sombras dos parques e algumas esquinas, os velhos
ficam quase sem explicação enquanto os seus últimos dias
se contam pelos dedos das poucas pessoas que neles reparam.
Caminho entre aqui e ali, para trás e para diante
e vou prestando atenção à publicidade enganosa
que distribui alguma cor pelas calçadas: «beba com moderação»,
isto e aquilo previne o cancro, faz bem ao coração e jesus salva
há um sinal à entrada de uma livraria que diz que ler faz bem
não sei se faz, entro, folheio minúsculas edições de autor
dedicadas às namoradas, mães, primas etc.,
compro um livro de instruções pelo preço
de duas ou três imperiais (dependendo da casa claro)
que abri numa página ao acaso e tinha um desenho feito à máquina
com a legenda - corte os pulsos pelo tracejado.
Entro num café e sento-me próximo de duas mulheres
nem feias nem bonitas, um pouco mais velhas que eu
com os seus pequenos ganchos e palavras
de enterrar os homens que nunca mais se transformam
nos príncipes que elas pensam merecer.
Preocupam-se com coisas, querem rebentar de filhos, parir o amor
mas tudo o que conseguem neste tipo de estabelecimentos da realidade
é um desejo amarelado que as levaria dali para um vão de escadas
e as castigaria por trás despejando um infértil esperma
carregado de malefícios e doenças da tristeza.
Quando acabam de tomar as formas luso, levantam-se
e saem devolvendo alguma paz a este fim de tarde.
Quanto a mim, mais tarde vou passar por alguns clubes nocturnos
onde me vou juntar a todas as suas crianças envelhecidas,
abandonadas pelos pais na secção
de brinquedos de um supermercado, moderadamente bêbadas e drogadas
escondendo os sinais de um corpo sem melodia, à deriva
na influência de umas réstias de punk rock.
E a noite vai acabar-se, sem fazer mais sentido
do que fez o dia e não será certamente este poema
que irá salvar esta data irrepetível.
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