nas margens do grandioso rio Eufrates está um homem
que por motivos alheios à sua vontade
abre os pulsos e chora, depois acalma-se nas águas
e segue à boleia da corrente despedindo-se do mundo
sem inscrever nem uma nota
no rodapé das vidas de quem não quer saber
ninguém lhe encontra o corpo, nem há quem procure
o homem desaparecido, só um poeta o vê descer o rio
mas não avisa a polícia nem telefona para os bombeiros
senta-se e escreve o primeiro poema de um livro
do outro lado do mundo outro poeta respeita
um termo de identidade e residência
lê cada vez menos e apenas recados de loucos e agitadores
tipos que pegam fogo a si mesmos e saem da vida aos berros
ou em certas tardes desce às ruas e divide-se entre nadas
no anonimato de todos os génios maníaco-depressivos definhando nos cafés
desenrolando bombons metafísicos, descascando as horas mais lentas
e diluindo-as num meio cheio copo de metáforas
não se falam, apenas um cumprimento à entrada e à saída, no entretanto
compartilham um silêncio compreensivo, a suja brisa
que não acaricia mas fere os rostos da cidade
suportam os discos pedidos e os tiros perdidos
entre juventudes que alucinam perante o espelho
e partem em demandas quixotescas para beijarem os lábios frios
dessa donzela que eu não preciso nomear
a turva perspectiva urbana faz-se de ânsias
e exigências, todos os dias chegam aos portos de Lisboa corpos carentes
permeáveis às ilusões mais fáceis, a carne tenra para o canhão
da decepcionante fronteira entre a realidade e a ficção
nem todos os avisos do mundo são suficientes
nem os museus e galerias que se enchem de fracturas expostas
o resultado é exactamente o oposto, os miúdos deixam-se engatar
nas descontínuas visões oferecidas por velhos
que andam sempre com as mesmas calças largas
de bolsos descosidos, para quando não é dia de festa
sabem as cantigas mais populares de todas
e das mangas puxam sempre como trunfo o charme dos suicidas
acrescentam os pontos certos nos contos populares
e relatam o desgaste e os maus tratos onde cambaleiam
alguns seres luminosos e inspirados antes de verem
os corações rebocados entre os restos de sábado à noite
não há para onde ir, os mais felizes vivem tranquilos
no conforto de uma permanente desilusão e aí
erguem alvenarias que vão fascinar depois
os impressionáveis miúdos, frutos que caem antes de tempo
porque querem tudo da noite para o dia e se cansam
tão depressa, vítimas da dança, embalados como eu e tu
pela voz rouca que sem acreditar no que diz
insiste no nosso refrão cansado
e resume esta história de amor (chamemos-lhe assim)
enquanto cada um de nós gostava da música
por razões muito diferentes
não houve, naqueles dias, um livro que nos calasse
ainda ficou um eco surdo de tudo o que dissemos
e é difícil perceber se gerimos bem um engano
ou se trocámos olhares um com ou outro
numa altura em que andávamos muito agarrados ao espelho...
esta manhã entalo na tua orelha uma flor imaginária, toco-te
no joelho a meio de um verso, escrevo o teu nome
pela última vez, mulher
vais ficar entre os papéis, amarelecendo
e a história seguirá largando-te na berma da estrada
quando não tiveres mais nenhuma utilidade para o diário, ficará apenas
uma referência no contexto de um período azul, vendida em segunda-mão
para quem quiser fingir asas para se despenhar contigo
infelizmente nem sequer o teu nome (que se pode dizer de trás para a frente)
soa lírico como o de Ophélia, não faz mal, há mais tempo para outras primaveras
e mais impressionantes árvores invisíveis, tudo se justificará
mas nunca te preocupes com estes versos, é uma forma
de acreditar às vezes na pior versão de ti
enquanto dominas este vazio, tu que afinal nem existes
da mesma forma que não existiu aquele suicida
se não recuperarem o seu cadáver
das margens do grandioso rio Eufrates, percebes?
são apenas coisas que fazem o poeta sentar-se e escrever
não me leves a mal, era só isso, e assim - estamos conversados
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